Faro: Coobital celebra 50 anos e critica falta de vontade política para resolver crise da habitação

Com mais de 2000 fogos construídos, cerca de 1300 apenas na cidade de Faro entre 1982 e 2008, a Coobital – Cooperativa de Construção e Habitação Económica Farense, tem razões e um sólido historial para celebrar os 50 anos da sua fundação, no sábado, dia 10 de maio.
«A nossa cooperativa é afiliada na Federação Nacional das Cooperativas de Habitação (FENACHE) desde que foi constituída, portanto, temos acesso e há uma partilha constante daquilo que fazemos junto das entidades governativas, sejam eles ao nível do governo central, sejam ao nível das políticas municipais. Tivemos várias crises, sobretudo a do subprime em 2008, e logo a seguir, a pandemia da COVID-19. Tudo isso foi servindo para criar algumas almofadas a quem tem responsabilidade» de resolver o problema da habitação que se instalou no país, opina Orlando Vargas.
Ao mesmo tempo, grandes fundos imobiliários foram-se instalando no país e surgiram iniciativas como os Vistos Gold. «Não sou contra, mas considero que, se tudo isso veio a dar alguma robustez à economia portuguesa, então, que os resultados dessa robustez fossem aplicados em Habitação de Custos Controlados (HCC)», diz.
«Desde o último edifico habitacional composto por 18 fogos na Urbanização de Santo António do Alto, em Faro, concluído em 2008, há 17 anos, não voltámos a construir. Sobretudo por falta de terrenos e de apoio por parte das entidades oficiais para que os programas de custos controlados pudessem, de novo, ser uma solução para as famílias que não conseguem ter acesso à oferta» no mercado atual, que parece focar-se cada vez mais nos segmentos de luxo, e na oferta para investimento, sobretudo estrangeiro.
Orlando Vargas defende que o mercado do arrendamento cooperativista seria «fundamental» para ajudar a resolver a atual crise.
«E não apenas para a habitação permanente. Permitiria ajudar os mais jovens, os estudantes, os trabalhadores temporários e os mais carenciados e que não se enquadram nos critérios da habitação social da autarquia», diz.
«Queremos, e temos feito várias propostas, desde os anos 1980, para que as cooperativas possam, no mercado de arrendamento, fazer casas para arrendar a bom preço, com rendas verdadeiramente acessíveis. Há legislação para isso, está aprovada, existe, mas a banca não nos financia a longo prazo. Só financia o cliente final, não financia a entidade», começa por explicar.
No entanto, a procura é tal que dá um exemplo recente: «vendemos uma loja que não tínhamos falta. A lei agora permite transformar espaços comerciais em habitação. O dono ainda nem acabou a obra e já tem tudo arrenda, a médicos, enfermeiros, pessoas que vêm para cá trabalhar. Arrenda os quartos a 450 euros mensais e já está cheio».
Por isso, «a ideia era a cooperativa construir e alugar os apartamentos aos seus cooperadores, gerindo o todo o processo e amortizando a dívida», diz. O custo da construção é honorado tanto na venda como no aluguer. É a mesma coisa», compara.
O problema é que a banca não financia este tipo de projetos. Porquê? «Não deve ter interesse. Se houvesse vontade, isso resolvia-se».
«A única hipótese seria o Estado dotar o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) de condições para fazer o financiamento e pressionar a Caixa de Geral de Depósitos, que é um banco público», a garantir as verbas necessárias.
«Aí, acredito que sim, mas isso teria de haver uma grande vontade política», sublinha.
E mesmo assim, o copo só ficaria meio cheio. «Não é possível comprar terrenos a cerca de 50 ou 60 mil euros por cada fração, que são os preços que o mercado está a praticar, para depois fazer HCC. Isso é impossível».
«Os terrenos para HCC têm um valor fixado por lei, não podem ultrapassar os 12 por cento do custo do apartamento. Terá de ser o município a doar os terrenos para esse fim».
Na visão do cooperativista Orlando Vargas, a mais recente habitação a custos controlados, «Casa Nova», obra do mandato do presidente Rogério Bacalhau (PSD), foi uma operação imobiliária.
O município vendeu os terrenos à construtora Ferreira Build Power, e a obra foi financiada pelo Santander, tal como o barlavento noticiou.
O IHRU estipulou o preço por metro quadrado com base nas mais-valias e, feito o sorteio, muitos dos contemplados não conseguiram obter empréstimo devido ao elevado preço dos fogos.
Vargas recorda que em 1988, a Coobital já tinha tentado comprar à Rodoviária Nacional, os terrenos onde hoje está a Urbanização Calouste Gulbenkian, de custos controlados, construída no tempo do autarca José Apolinário (PS).
«A cooperativa quis comprar. Apresentámos uma proposta, mas quem acabou por comprar o terreno foi a Câmara Municipal de Faro no tempo do autarca Luís Coelho, com o objetivo único de que só poderia ser lá construído HCC».
Mas ainda «ficaram dois lotes por construir, porque era necessário fazer um plano de pormenor para toda aquela zona da Lejana. Acompanhei todo esse processo na perspectiva desses futuros 90 fogos serem para nós. Quando o presidente Bacalhau foi eleito na última vez, pedi uma reunião, fomos apresentar a ideia, como é normal, e remeteu o assunto para o vereador da habitação. 15 dias mais tarde, vimos o edital para vender o terreno», a privados.
«Portanto, a política de habitação da Câmara de Faro, nos últimos 20 anos, foi um desastre».
Vargas reconhece que o município também «passou por momentos complicados em termos económicos e financeiros. Mas há muito tempo que tem superavit. Não houve interesse em agarrar este problema. Não estou a fazer críticas ou qualquer tipo de análise política. É a minha opinião», refere.
«Não houve uma verdadeira aposta. Não houve. E nós acabámos por sofrer as consequências, porque também não tivemos apoio», lamenta.
No dia da cidade de Faro, a 7 de setembro de 2024, durante a cerimónia de inauguração de dois blocos de Habitações a Custos Controlados (HCC), junto à Estrada Senhora da Saúde, Rogério Bacalhau, presidente da Câmara Municipal de Faro, pediu ajuda ao então ministro das Infraestruturas, Miguel Pinto Luz, para encontrar terrenos para mais projetos idênticos e expandir o perímetro urbano da cidade.
Vargas reconhece que o município «não tem bolsas de terreno», mas, em 1990, quando o Plano Diretor Municipal (PDM) que foi aprovado, «constava uma diretiva. Dizia que em todos os loteamentos licenciados, 10 por cento da construção teria de ser afeta à habitação de HCC».
«Depois disso, já vi tanta urbanização aprovada. Na Lejana, por exemplo, não vejo lá nenhumas casas a custos controlados. Mas o PDM exige que isso teria de ser cumprido. Até hoje não vi nenhuma casa construída, seja pela Câmara, seja pelas cooperativas, seja por quem quer que seja, a menos que essa normativa tenha sido banida do PDM», entretanto.
Questionado sobre a nova Lei dos Solos, que prevê a expansão urbana para zonas até aqui não edificáveis, responde: «concordamos, desde que essas áreas fossem destinadas a HCC. Não ficou isso na lei. Ficou definido habitação acessível. Ora, desde que tenha uma rampa à porta, toda a casa é acessível», ironiza.
«Repare, o loteamento da Penha, o da Lejana e o do Intermarche, são enormes. Se pegar naquela área bruta de construção e retirar 10 por cento, tem aí uma série de terrenos para construir HCC».
Há duas perguntas que se impõem nesta entrevista. A atual crise da habitação não seria um terreno fértil para o trabalho das cooperativas? E qual o seu futuro do cooperativismo neste sector?
«Pois seria. E temos refletido muito sobre isto. Cada vez que um governo cai, e agora tem sido recorrente, apresentamos propostas. A Federação elencou 60 medidas para a habitação, propostas pelos vários partidos com assento parlamentar que estão agora a concorrer às eleições legislativas. Se conseguissem implementar duas ou três já seria bom. Dizem que está tudo certo, mas até agora, tudo tem ficado no papel», reitera.
Por exemplo, durante o último governo socialista, «tivemos várias reuniões com Pedro Nuno Santos quando era ministro das Infraestruturas e estava tudo certo. Agora, argumenta e, se calhar com alguma razão, que o trabalho foi interrompido».
E «sempre que há eleições autárquicas, fazemos essas reuniões e colocamos a nossa cooperativa ao dispor de todos os candidatos».
Certo é que «a atividade principal da cooperativa está parada. O nosso projeto hoje é social, cultural e desportivo. Constituímos a Fundação Algarvia de Desenvolvimento Social, que investe na educação e é importantíssima para a cidade. O nosso foco agora é criar condições para os jovens, com a creche e o jardim de infância, manter os nossos colaboradores, a estrutura, as contas correntes e não dever nada a ninguém».
E «esperar que alguém se lembre que já tivemos um passado risonho. Esperamos sempre que apareça uma hipótese de podermos dar o nosso contributo para poder ajudar a resolver o problema da habitação».
Hoje, «pensamos que o trabalho que já desenvolvemos, em especial na cidade de Faro, merecia outra atenção dos poderes, quer estatais quer municipais. De referir ainda que em todos os fogos construídos, apenas na Carreira de Tiro e Santo António do Alto houve algum apoio da autarquia. De resto, todos os terrenos foram adquiridos a privados sem qualquer tipo de apoio», diz.
Já em relação à pergunta sobre o futuro, recorda que «o início da cooperativa foi um processo muito dinâmico, muito interessante. Lembro-me de convocar assembleias em que tive de que fechar a porta porque não cabia mais ninguém. Mas depois, a partir de uma certa altura, começou a esvaziar o entusiasmo de Abril. As pessoas começaram a ser mais egoístas, mais calculistas. Toda a sociedade mudou. E as assembleias começar a ficar vazias».
Há 10 anos, «criámos o Grupo de Jovens na FENACHE. As cooperativas que tivessem condições, nomeavam alguém. Na prática, era já a pensar no futuro. Mas hoje, não posso criticar os jovens por não abraçarem isto por causa de todas as dificuldades que referi».
Ainda assim, quando olha para trás, «tudo valeu a pena. Não me sinto totalmente realizado, mas sinto-me outro homem. Vim para aqui com 23 anos, como sócio, em 1979. Estava na Força Aérea, inscrevi-me e passados dois a três anos, vim para a direção. A cooperativa esteve para ser extinta, pois não havia terrenos (tal como hoje) para se construir. Ofereci-me para um grupo de trabalho. Ao fim do ano, a Câmara tinha cedido os terrenos da antiga Carreira de Tiro. Comecei jovem e na prática, aprendi a ser homem aqui. Não me arrependo de quase nada daquilo que fiz», conclui.
A Coobital nunca foi concorrente do imobiliário tradicional. «Mesmo no tempo em que em se construiu muito, houve lugar para todos. As nossas casas foram sempre dignas, com grande qualidade», mas eram diferenciadas do mercado tradicional.
«As cooperativas são formadas por pessoas. E isso não mudou. O código cooperativo é claro, objetivo e muito pragmático. Um grupo de cinco pessoas pode formar uma cooperativa. O que está a acontecer hoje é que há empresas gestoras de projetos imobiliários que utilizam este modelo» para obter o melhor dos dois mundos.
«É muito simples. A cooperativa tem seis por cento de IVA na construção. Não paga IMI nem IMT. Quando as casas ficam concluídas, a cooperativa é extinta. O lucro vai todo para a sociedade gestora da obra que cobra uma percentagem para gerir o processo. E vai buscar a maior parte do bolo. No final, as pessoas compram as casas e não querem saber de mais nada. Isto é legal», descreve.
Este tipo de operação, «até pode não inflacionar muito o preço das casas», mas tem um custo social.
«Repare, com os capitais próprios de resultados do Fundo de Reserva e Construção das casas que fizemos, temos uma sede que está ao serviço dos cooperadores. Todos os dias há aqui ginástica, há dança, há um movimento associativo que apoia várias modalidades, como ciclismo, cicloturismo, BTT. É tudo do fruto do nosso trabalho. As empresas não fazem estas coisas, como é normal, só querem o lucro», explica.
Como se trava isso? «Entendemos que não se devem chamar cooperativas. As cooperativas têm outro âmbito. São entidades do terceiro sector e que estão bem claras na legislação. Quem não respeitar ou quem não seguir esse caminho, não está a ser correto. O que queremos é que, de facto, se criem condições para as cooperativas trabalharem e, naturalmente, se estiverem no terreno a atuar, essas estruturas não têm vida, não têm sucesso».
Barlavento