O Olhar Algorítmico: o que vemos, o que perdemos

Abrimos o telemóvel e o conteúdo já está lá. Um vídeo puxa o outro, uma música leva à seguinte, uma imagem substitui rapidamente a anterior. Pouco do que vemos é fruto de escolha consciente. A maior parte do que consumimos culturalmente e artisticamente – músicas, filmes, imagens, textos – é decidido por sistemas de recomendação algorítmica.
Vivemos num mundo curado pela tecnologia. Algoritmos invisíveis ditam o que aparece nos ecrãs, o que se torna viral ou permanece por ver. Pese embora a adaptação destes sistemas opacos a cada utilizador, os mecanismos de recomendação que escolhem o conteúdo a que somos expostos privilegiam estéticas familiares e formatos reconhecidos. Por exemplo, poderei ver um post de cinema pois é calculada a alta probabilidade de interagir; porém, a todos os utilizadores com um perfil semelhante ao mesmo será mostrado o mesmo conteúdo – a mesma ideia, a mesma estética, a mesma narrativa. É assim que playlists musicais convergem para os mesmos sons, que séries e filmes são promovidos segundo padrões de consumo previsíveis, e que imagens circulam nas redes sociais segundo tendências visuais repetidas, facilmente reconhecíveis e rapidamente descartáveis. Uma experiência com recomendações personalizadas no Spotify descobriu que, embora aumentem o envolvimento (consumo), essas recomendações reduziram a diversidade média de conteúdos consumidos pelos utilizadores em cerca de 11,5% — indicando uma tendência à homogeneização (Field Experiement on Spotify, Holtz et all). Outro estudo semelhante mostrou que, no TikTok e Youtube, é maior o tempo que passamos a consumir conteúdo recomendado em oposição ao escolhido livremente. A aparente diversidade de escolha oculta uma profunda uniformização da experiência cultural. A tecnologia não só muda a forma como a arte é produzida e distribuída, mas também aquilo que é tornado visível e, consequentemente, valorizado. Historicamente, a arte e a cultura são ferramentas com função de crítica, imaginação e dissidência. Ajudam as sociedades a refletir sobre memórias e acontecimentos, a imaginar futuros alternativos e a dar significado à experiência humana. A arte proporciona-nos linguagem simbólica, visual, auditiva, corporal, para conceitos que não podem ser traduzidos em dados ou métricas: o amor, o medo, a pertença, a esperança.
Neste tempo marcado pela aceleração, pela instabilidade e pela fragmentação – aquilo que Zygmunt Bauman descreveu como modernidade líquida, onde os ideais de longo prazo são substituídos por gratificação instantânea e felicidade individual – a arte deveria constituir um espaço de pausa, reflexão e resistência à obsolescência permanente.
Contudo, o terreno onde hoje circula grande parte da cultura, as plataformas digitais, é regido por uma lógica profundamente estranha à profundidade da experiência humana: a lógica binária da otimização. Como alerta Yanis Varoufakis ao falar de tecnofeudalismo, estas plataformas funcionam como territórios privados de extração de valor, onde a atenção se transforma em renda e a criação cultural em recurso explorável.
Vivemos, assim, numa sociedade em que a atenção é sistematicamente capturada e a memória coletiva é progressivamente esculpida por sistemas que priorizam a interação em detrimento da expressão e a previsibilidade em detrimento da imaginação. Neste assalto à experiência humana, as ferramentas tradicionais que nos ajudam a ir mais fundo, a arte e cultura, não estão a salvo.
Outras fontes não citadas diretamente:The Algorithmic Gaze, AT – Art & Technology Journal
O Observador associa-se aos Global ShapersLisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. Ao longo dos próximos meses, irão partilhar com os leitores a visão para o futuro nacional e global, com base na sua experiência pessoal e profissional. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.
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