Mútua destruição democrática assegurada

A expressão destruição mútua assegurada é um termo conhecido sobejamente pelos cientistas políticos, mas faz parte também do ethos social e da cultura popular. Criado por Donald Brennan, na altura no Hudson Institute, em 1962, significa aquilo a que estamos habituados a referir: o conceito que duas superpotências militares, com suficiente arsenal nuclear para se destruírem mutuamente, tinham assim o incentivo para evitar um conflito que resultasse no lançamento dos mísseis intercontinentais com a sua apocalíptica payload. No ano de 2025, a ruína dos Estados Unidos não parece vir tanto por força do átomo, mas mais devido a uma salamandra.
Foi em 1812 que o então Governador do Estado de Massachusetts, Elbridge Gerry, assinou o decreto estatal que determinava que um dos distritos na zona de Boston teria uma configuração territorial tal, que a eleição do candidato do então partido Democrata-Republicano era garantida. O condado estava desenhado no papel de tal forma que fazia lembrar uma salamandra. Juntando assim o nome do Governador com o anfíbio, e ficou para a história a criação da palavra gerrymander. Adaptado aos dias de hoje, para a eleição dos representantes (deputados) para a Casa dos Representantes (a câmara baixa do Congresso), gerrymander aplica-se aos distritos congressionais nos Estados Unidos.
No último 9 de julho, o Governador do Estado do Texas convocou uma sessão especial da legislatura para responder ao que foram as terríveis inundações em Hill Country, que tomou a vida a pelo menos 100 pessoas. Na agenda encontrava-se também a alteração dos distritos congressionais no Estado que, teoricamente, levaria à eleição de mais cinco Republicanos para o Congresso Federal em 2026. Isto no seguimento do pedido, expresso, por parte do Presidente Trump, que enviou o sinal de que tal teria de ser feito o mais cedo possível, de maneira a ter assim uma maior probabilidade de garantir a liderança do Congresso e da Casa Branca até 2028.
O mapa de distritos congressionais no Texas foi já repetidamente alterado para criar mais distritos com maiorias de votantes que se afirmam Republicanos, diluindo votos de minorias e de Democratas. O Departamento de Justiça, durante a presidência Biden apresentou um caso em tribunal para tal ser alterado, mas isso seria abandonado imediatamente quando a Administração Trump tomou posse. Até eleitores no Texas iniciaram iguais processos, ao abrigo do famoso (e crucial) Voting Rights Act de 1965. A única resposta que os Democratas na Casa dos Representantes do Estado do Texas tiveram foi de abandonar o Estado, indo para Illinois e Nova Iorque, para negar o obrigatório quórum de legisladores para o novo mapa avançar para ser depois promulgado por Abbott, o Governador.
Sendo uma manobra recorrente, tanto em estados com maiorias Republicana como Democrata, esta, em especial, parece ser uma resposta desesperada às sondagens, ao descontentamento, e ao inevitável aumentar de dificuldades para os americanos, seja a nível económico (tarifas), de benefícios sociais (BigBeautiful Bill), da desproporcionalidade de ações para a remoção de emigrantes (agentes com máscaras e carrinhas não identificadas) ou até de ver o exército em ações policiais nas ruas das suas cidades. Com a média de diferença na intenção de votos em 3,5% entre um candidato Democrata e Republicano genérico, isso pode levar a uma mudança na liderança na Casa dos Representantes em novembro de 2026, o que pode implicar impeachments, investigações, audiências, controlo do orçamento, apoio à Ucrânia, etc. Mais cinco Republicanos podem fazer a diferença.
Devido à ação do Governador Abbott, agora está criada uma corrida ao armamento (continuando a usar linguagem militar), mas neste caso ter o máximo possível de eleitos para cada partido nos Estados Unidos. O Governador do Estado da Califórnia já ameaçou fazer o mesmo, o que por sua vez levou Flórida a dizer fazer o mesmo, mas em sentido contrário, e Nova Iorque no sentido da Califórnia, e Ohio como Flórida, e…e…
A ideia de que serão os governadores a escolherem os eleitores que votam nos candidatos, quando deve ser os eleitores a escolher os candidatos que os representam, não augura nada de bom, naquilo que já é um país no limite da coesão política e social. Tudo isto representa o culminar da erosão, pela polarização e avareza, do sonho de Pais Fundadores como James Madison, Alexander Hamilton, e John Adams, com o princípio de republicanismo, com a eleição de representantes do povo, que refletem não só a vontade dos eleitos, mas também a sua natureza e diversidade.
Se esta destruição mútua da democracia avançar, e com todas as consequências terríveis que pode causar local e nacionalmente, começa a assumir uma forma mais ominosa a famosa frase de Benjamim Franklin: “Uma República… se a conseguirem manter”.
observador