Prémio Laranja Amarga pelo fim do Plano Nacional de Leitura pela calada das férias escolares

O acesso à leitura e ao conhecimento marca a diferença entre o obscurantismo e a visão cosmopolita do mundo. Para os saudosos dos tempos do respeitinho e da escola de antigamente que “ensinava como devia ser”, talvez seja bom ter sempre presentes os dados da Fundação Francisco Manuel dos Santos, dirigida até há poucos meses pelo atual ministro Gonçalo Matias, segundo os quais em 1974 eram analfabetos 25% dos portugueses (2/3 dos quais mulheres), apenas 8% das crianças frequentavam o pré-escolar, só 5 % dos adolescentes chegavam ao ensino secundário, nos então chamados liceus, e havia apenas 56 mil alunos no ensino superior.
Atualmente o analfabetismo é inferior a 3%, 95% das crianças frequentam o ensino pré-escolar, 88% dos jovens atingem o ensino secundário e em 2023 estavam cerca de 430 mil estudantes inscritos no ensino superior.
Mas não basta alargar a rede e diversificar a oferta, é essencial criar desde os primeiros anos do percurso escolar a sede de conhecimento, a descoberta de novas realidades e a difusão de hábitos de leitura. Para tal duas ferramentas de impacto transversal foram decisivas para mudar a imagem das nossas escolas, tornando-as em janelas para o mundo que não se limitam a cumprir horários escolares e a preparar os estudantes para avaliações. Estou a falar da Rede de Bibliotecas Escolares e do Plano Nacional de Leitura.
A Rede de Bibliotecas Escolares foi criada em 1996 e desde então estabeleceu um padrão de qualidade e de referenciação no acesso ao saber que virou a página ao modelo antigo de biblioteca, misto de depósito de livros e de sala de estudo (ou de castigo para os mais irrequietos…). Mas sobretudo a partir da nova rede de centros educativos construídos em parceria com as autarquias locais, a Rede criou bibliotecas em todas as novas escolas do ensino básico, algo inexistente nas velhinhas “escolas primárias”. A rede de bibliotecas estende-se hoje a 2582 bibliotecas escolares, a maioria delas nos primeiros ciclos do ensino básico, contando com o apoio de 1380 professores bibliotecários e 892 assistentes de biblioteca. Funcionam em rede, têm uma forte componente digital e são promotoras de atividades para a escola e muitas vezes de iniciativas abertas aos pais e à comunidade.
O Plano Nacional de Leitura foi lançado em 2006 e relançado em 2017, por Tiago Brandão Rodrigues, com um programa de ação que vai até 2027. Superou a visão fechada dos livros de “leitura obrigatória” que tantas vezes fizeram gerações de jovens detestar magníficos autores. Promove edições, recomenda leituras diversificadas por idades, elabora manuais de apoio a atividades didáticas e promove debates, clubes de leitura, iniciativas com autores, quer nas escolas quer para a comunidade, que vão do ensino básico às universidades seniores que se multiplicaram por todo o país.
Subitamente este Verão, no último Conselho de Ministros antes de férias, Gonçalo Matias veio anunciar a grande Reforma do Estado e Fernando Alexandre como pupilo aplicado voluntariou-se para dar o exemplo saltando para o “quadro” mediático como pioneiro da revolução nos Ministérios.
A reforma do Ministério da Educação foi apresentada sem relatórios, sem estudos, muito menos com audições ou debates com o setor, apenas proclamando os méritos da eficiência, racionalização e da redução do número de organismos e de dirigentes. Surpreendentemente entre as vítimas estão a Rede de Bibliotecas Escolares e o Plano Nacional de Leitura deixando seriamente preocupados os docentes ligados ao setor por esta inesperada surpresa em plenas férias escolares.
A resposta de Fernando Alexandre às críticas repetiu o padrão já conhecido do debate de Verão sobre as aulas de cidadania, designadamente sobre as matérias relativas à sexualidade. Que nada seria posto em causa e que a promoção da leitura passaria a ser uma preocupação ao cuidado de uma secção do novo mega Instituto da Educação, Qualidade e Avaliação.
Quando a leitura e o acesso ao conhecimento estão ameaçados pelo lado negro das redes sociais, pela generalização das fake news e pelo desprezo pelo dispêndio de tempo com a descoberta de textos de dezenas ou centenas de páginas que vá para lá dos títulos, percebe-se a apreensão causada por esta injustificada fúria reformista sobre as bibliotecas escolares e o Plano Nacional de Leitura, que não tinha sido prometida em campanha eleitoral e ninguém tinha reivindicado.
Por estas alterações, sem diálogo e a meio de férias, liquidando duas equipas vencedoras na batalha pelo conhecimento, o prémio Laranja Amarga volta a ser para Fernando Alexandre.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
Visao