João Machado: o designer em cartaz

Uma retrospetiva da obra de João Machado está a partir deste sábado, 28 de junho, patente no MUDE — Museu do Design, em Lisboa, que recebeu em 2023 o espólio do designer gráfico nascido em 1943 e assim se junta ao de outros mestres desse nobre ofício, de que valerá sempre a pena lembrar o caso de António Garcia (1925-2015), a mostra e o catálogo de 2010. Essa vocação essencial de um museu deste tipo — a de acolher, estudar e expor os trabalhos de artistas em evidência num determinado período — cumpre-se perfeitamente nesta realização, a primeira, desde 1982 (cartazes na Sociedade Nacional de Belas Artes) que traz a Lisboa uma panorâmica dos trabalhos de João Machado, muito depois — e essa demora também merece atenção crítica — de idênticas apresentações como a no Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso, de Chaves, em 2017, com o catálogo João Machado: Arte da Cor (191 pp.), de bibliografia que lhe foi dedicada, como João Machado e a Criação Visual (Casa da Cerca, Almada, 2001, s/n.) ou João Machado de Francisco Providência, José Bártolo e Helena Sofia (Cardume, Matosinhos, 2016, 96 pp.).
Uma muito considerável galeria de prémios internacionais e nacionais não pode deixar de legitimar o interesse pela obra de Machado, um nome talvez menos conhecido do público, mas bem considerado pelos seus pares, como sucede com o japonês Keizo Matsui (1946-) e com Francisco Providência (1961-), designer e professor, que comissaria esta exposição — e internacionalmente ficou assinalado ao mais alto nível pelo Prémio Icograda Excelência, o “Nobel do Design Gráfico”, que lhe foi atribuído em 1999. Muito representado em exposições coletivas internacionais de cartazismo, Machado colheu substancial admiração no Japão, na Coreia do Sul e na China, tendo sido convidado a conceber cartazes, entre outros, para o Ogaki Matsuri Festival em 2016 e 2017, depois de o ter feito em 2014 para a Bienal Internacional del Cartel na Cidade do México.


Um dos seus primeiros trabalhos de relevo foi o cartaz dum concerto do Billy Harper Jazz Quintet no Anfiteatro da mesma Escola Superior de Belas Artes do Porto, (onde se licenciou em escultura em 1968, tendo sido colega de Zulmiro de Carvalho, para quem fez o cartaz de uma das suas primeiras exposições; cartaz todavia ausente nesta retrospetiva), feito em finais de 1980, mas foram sobretudo os seus trabalhos para o festival de cinema de animação em Espinho, o celebrado Cinanima, a que João Machado se manteve ligado desde o início, em 1976, que claramente o identificaram e distinguiram no panorama visual dessa também chamada “arte pública”: cores vibrantes, cantos cortados, caixilhos fortes, por vezes o formato quadrado — como no belo cartaz “Ciclo do documentarismo cinematográfico” (SEC, 1977) —, e figuras desenhadas que ora lembram banda desenhada e os primeiros trabalhos de Eduardo Batarda, ora nos remetem para certas telas pop de António Palolo, ou, como já alguém disse, para o colorido feérico das festas minhotas que presenciou na sua infância, senão mesmo para o cromatismo compacto, liso e luminoso dos quadros de Ângelo de Sousa (como todos, à exceção de Palolo, estudantes e depois professores de Belas Artes no Porto).
Nos cortantes e incisões patentes em alguns cartazes de Machado também foram notadas aproximações ao pintor e escultor argentino-italiano Lucio Fontana (1899-1969), muito em voga nos seus anos de formação (v., entre vários, o cartaz de 1977 para um ciclo de cinema de animação no Museu Nacional de Soares dos Reis). O próprio reconheceu a influência do polaco Henryk Tomaszewski (1914-2005), enquanto, como tantas vezes sucede, vários críticos lhes juntaram outros nomes, de diferentes latitudes e tendências, ao longo dos anos, de clara ou hipotética verosimilhança.

Depois, e de modo crescente, João Machado colherá referências nas artes japonesas, como desde logo deixam concluir os invulgares calendários e cartazes dos Papéis Carreira em 1996-2000, e mais adiante no crescente apreço por encomendas ligadas à reparação ambiental e à sustentabilidade planetária, que hão de tornar-se um tópico de central relevância no seu portefólio dos últimos anos; “Reinvenção da Natureza, 2014-2024” é por isso, justamente, uma das secções da exposição do MUDE. Francisco Providência escreve no catálogo que os cartazes de Machado — uma “biofilia lírica e encantada” — são “janelas de poesia e silêncio que se abrem no ruído da contemporaneidade para que possamos fazer meditação” (pp. 34, 35), referindo-se, quem sabe, aos três de 2011, Ano Internacional das Florestas, “Save the Life” e “Water for Life” (cat., pp. 189-91).
Muitos livros escolares da ASA, cartazes para a Exponor e para a Associação Industrial Portuense, e logotipos empresariais e institucionais nos anos 80-90 ajudaram certamente a sustentar o seu atelier na Foz Velha, mas à exceção do realizado para a CampisPort’85 (impresso a oito cores pantone, no formato 47,5 x 67,5 cm; p. 79), ou, vá lá, o para a Expodouro de 1997 (a cinco cores pantone, 48 x 63,3 cm) hoje não me parece que mereçam ser vistos uma segunda vez. Estava então ainda demasiado aquém do cartaz “Shoe Design” (70 x 100 cm; p. 209), pelo qual recebeu o prémio Graphis Platina no ano 2024, ou mesmo daquele, de 1996 (duas cores pantone, 48 x 68 cm; p. 120), anunciando prémio português de design de calçado. No novo milénio, e tão inesperadamente como se pode imaginar, João Machado vai criar uma série de cartazes sobre fundo branco, com figuras recortadas, opção também exercitada em algumas séries de estampilhas postais de grande efeito, como as criadas aquando das Olimpíadas de Pequim 2008 e de Londres 2012.


As cada vez mais precisas ferramentas de desenho e coloração digital — ao contrário que sucedeu com outros bons cartazistas da sua geração, como João Botelho (1949-) e Cristina Reis (1945-), que as recusaram — vieram dar a João Machado benefícios enormes, permitindo-lhe desenhar e até esculpir muitos dos seus cartazes desde então, de que se destacam a série “A Água no bom caminho” para o Município de Almada em 2007, os “Think Green” com vagens ou folhas e o “Water for Life” de 2003 (cat. p. 169) — e, mais perto de nós, boa quantidade de selos postais, o cartaz para o Festival da Quinta das Lágrimas, Coimbra 2011 (cat. p. 187) e os cartazes digitais “Biodiversity”, de 2020, e “Save our Ocean”, 2024.
O cartaz de 2017 para o Cinanima 17, de Espinho, é uma excelente demonstração da larga evolução tecnológica posta ao serviço da criatividade de João Machado, rejuvenescendo-a na direção da altíssima tecnicidade digital que encontramos, por exemplo, nos trabalhos do cartunista André Carrilho, 32 anos mais novo do que ele, e como ele largamente reconhecido e premiado internacionalmente. Uma versão atualizada do cartaz “Molly Bloom” (49 x 49 cm), para espectáculo no Auditório Nacional Carlos Alberto, do Porto, em fevereiro de 1982 — com a atriz Graça Lobo e encenação de Carlos Quevedo, creio —, dar-nos-ia uma clara ideia de como criadores e impressores trabalham e cooperam hoje mais e melhor do que nunca, com resultados que não param de surpreender.

O que nos obriga a dizer que, se tivesse começado 25 anos depois, João Machado poderia ser depois de amanhã, não um dos 100 grandes designers do mundo, como foi classificado na China em 2015, mas uns dos 50 mais. Motivo mais do que suficiente para se visitar esta exposição, que se deseja venha a ser itinerante, no país e fora dele, como merece.
“João Machado, Poética Visual. 50 anos de obra gráfica (1974-2024)” está patente até 12 de Outubro de 2025. De terça a quinta-feira e aos domingos das 10 às 19h, e às sextas-feiras e sábados das 10 às 21h. Na Rua Augusta, 24, em Lisboa
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