Em política, o que parece, é

Se dúvidas havia, o último Conselho Europeu de 2025 confirma o que se foi descobrindo, mas sempre tentando ignorar desde o início do ano: a Europa Unida é um alvo a abater, não só para Putin e para a China, mas também para a nova administração americana. Depois do que se disse e do que aconteceu, negar esta realidade deixou de fazer qualquer sentido. Da Rússia já se esperava que mais tarde ou mais cedo surgisse um movimento de reconquista para vingar o colapso da União Soviética. Uma desagradável surpresa foi, no entanto, o que se descobriu da China, quando esta se libertou das limitações aos comportamentos agressivos que foram impostas por Deng Xiao Ping. A China, hoje inebriada com os sucessos económicos e tecnológicos, passou a assumir sem complexos a sua vocação à liderança mundial, sendo cada vez mais claro que detém neste momento todas as condições para o atingir. Mas para a Europa, o mais doloroso veio da América, com o anúncio de divórcio afirmado logo em Fevereiro em Munique pelo seu vice-presidente: ficou a saber-se que a América não gosta desta Europa e que não está disposta a continuar a assegurar a sua protecção. Certo que o discurso de Munique foi abafado pelo cobarde reflexo negacionista que cobriu toda a classe política e os media europeus, que se foram anestesiando com leituras fantasiosas sobre o que significava Trump. E a reação ao insulto americano foi mesmo dirigida para dentro e consubstanciou-se na autoflagelação e na assumpção de erros passados, na esperança de que um perdão colocasse a Europa outra vez no caminho das graças americanas. Amarga ilusão, porque apesar da humilhação da UE num golfe da Escócia, em que aceita com aparente alegria as tarifas de 15% nas exportações contra 0% nas importações e das insuportáveis cenas de bajulação a que se foram sujeitando ao longo de todo ano os líderes europeus para com o novo senhor da Casa Branca, a América não perde uma ocasião para confirmar sem deixar margem para dúvidas, que a Europa não tem qualquer relevância e que é apenas um sítio mal frequentado onde peroram líderes fracos incapazes de se oporem à erosão dos valores históricos e religiosos. Pelo que, concluem, a única solução é substituir esses líderes por viris representantes das velhas nacionalidades, pondo um ponto final nessa deriva federal que tanto incomoda as multinacionais americanas, mas também o projecto imperial russo e o poder discricionário da China. Como se sabe, o sonho do regresso à Europa dos castelos e dos guerreiros sagrados, vai ganhando também muitos apoios internos.
Para além das ameaças externas, os europeus descobriram, entretanto, que se enganaram em questões estratégicas essenciais, como quando pensavam que a sua defesa era feita gentilmente pela América, não havendo necessidade de investir em recursos humanos e materiais. Descobriram também que se enganaram sobre o que significava a dependência energética à Rússia. E finalmente, descobriram que se enganaram quando assumiram que a China seria para todo o sempre um ilimitado fornecedor de produtos baratos e um ilimitado comprador para os seus produtos caros. Para não complicar o raciocínio, convém ter presente que este quadro de más decisões não resulta da existência da União Europeia, mas sim do que fizeram os governos nacionais em promoção dos seus interesses económicos imediatos. Mas de facto, olhando para este balanço, Trump tem razão com a sua conclusão relativa à qualidade dos líderes europeus. Fracos, muito fracos. Só que o problema é que a receita de Trump não resolve, mas pelo contrário agrava definitivamente, a impotência dos europeus.
A questão que se coloca para a Europa neste momento é mesmo existencial. A Europa, que graças ao movimento lançado pelos Portugueses do séc. XV, assumiu a liderança planetária, está num ponto absolutamente crítico, sendo que a realidade em que as nações europeias podiam somar territórios e riquezas ultramarinas, acabou há muito. Hoje o mundo está dominado pela América e pela China, que lembram ser impossível o regresso ao passado. As mais ou menos pequenas nações que resultaram da implosão do império romano, necessitam hoje para sobreviverem soberanas, do sucesso que tiverem no reforço do processo cooperativo iniciado nos anos 50 do séc. passado, que conseguiu eliminar a guerra no solo europeu e construir o maior mercado do mundo. Mas ao ajoelharem-se perante Trump, as autoridades europeias acabaram por perder o respeito do mundo, o que é visível pela forma como são tratados pela América ou pela China. Se um dia for finalmente desfeita a União Europeia, para além das consequências económicas de que ninguém ignora a gravidade, a Europa passará a ser uma colecção de pequenos reinos clientelares, que gesticulam e se acotovelam para obter o favor das grandes potências. Cada um por si e as grandes potências que escolham por quem preferem ser servidos.
O que estava em causa a 18 de DezembroPara os europeus, concordar que estão numa posição de fraqueza e à mercê de inimigos poderosos, não é tarefa fácil, mas afinal, reagir a essa infelicidade ainda o é menos. Depois de inúmeras hesitações e oportunidades falhadas, chegámos ao último Conselho Europeu do ano com um desafio absolutamente claro e com algumas propostas de decisões inadiáveis perfeitamente identificadas. Primeiro impedir o colapso da Ucrânia, fechando o caminho à vaga imperialista russa. Depois, concretizar a nível económico alianças essenciais para a Europa existir como entidade comercial autónoma das grandes potências. Só que ao contrário de outros momentos críticos que aconteceram na história da União, desta vez a dupla Franco-Germânica que tinha feito nascer e desenvolver a União, não respondeu à chamada, muito por doença grave de um dos participantes, a França, a braços com uma situação política e financeira desesperada. Coube a responsabilidade da liderança em solitário ao chanceler alemão, europeísta convicto e gestor desinibido. No início do Conselho Europeu sabia-se que falhando em Dezembro, a Europa teria muito provavelmente assinado o seu colapso.
Recorda-se que o programa do Conselho de 18 de Dezembro tinha dois pontos essenciais: (1) a utilização dos activos russos congelados pela UE e (2) o arranque do Mercosur, um grande acordo comercial com a maior parte da América do Sul, negociado pacientemente ao longo de 25 anos.
A primeira decisão tinha por objectivo assegurar os recursos financeiros imprescindíveis à defesa da Ucrânia, mas também tinha outros objectivos políticos, limitando a capacidade da Rússia de financiar a guerra de destruição e ao mesmo tempo neutralizar a vontade de Trump em se apropriar desses fundos para as suas ideias de negócios futuros. Trump sabe que neste momento não há mais liquidez financeira na Rússia, para além da que foi congelada pela UE.
A segunda proposta de decisão levada para decisão do Conselho, estabelecia a Europa como parceiro privilegiado de uma área historicamente dependente da América, mas agora muito ligada à China. As duas decisões, se positivas, permitiriam marcar a posição da Europa como uma entidade a ter em conta entre as duas grandes potências.
Mas não foi isso que aconteceu.
O que aconteceu em 19 de DezembroA oposição à utilização dos fundos russos vinha naturalmente dos governos europeus clientes de Putin, mas foi desta vez protagonizada pelo chefe de governo da Bélgica, país em que estão sediados os activos russos congelados. O que começou por ser uma reivindicação de justa partilha de responsabilidades entre os países membros da União num processo que tem evidentes riscos legais e políticos, acabou por evoluir na noite do Conselho, para uma exigência por parte do político flamengo em obter um cheque em branco com indiscriminada e ilimitada cobertura de riscos por parte da União. Proposta inviável, a situação complicou-se depois com a intervenção da presidente do governo italiano, chamando a atenção para os problemas e colocando dúvidas quanto à solução. Entra a seguir o presidente francês, que viu no impasse uma oportunidade para impor à Alemanha a emissão de divida conjunta europeia. O plano B de Macron, com emissão de divida europeia, acabou por ser aceite com o apoio dos governos pró-russos húngaro, checo e eslovaco, ficando afastada a utilização dos activos congelados. Convém ter presente de que ao contrário do que a Alemanha fazia querer acreditar, a UE tem capacidade financeira mais do que suficiente para acorrer às necessidades da Ucrânia sem recorrer aos activos russos. A recusa inicial da Alemanha em utilizar essa solução, tinha a ver com os objectivos políticos da Europa sobre Putin e Trump e com a aversão dos alemães à emissão conjunta de dívida, que muitos receiam ter de serem eles a pagar.
Com a solução acordada, poupados os activos russos, o primeiro-ministro belga anunciou poder regressar tranquilo à sua “dacha” (como fez questão de afirmar) para dormir descansado, já que uma das razões que invocava para ser contra a proposta de utilização dos fundos russos, era que tinha recebido pessoalmente ameaças e que ele teve naturalmente medo. Para a História fica a confissão de um líder político, que cede ao opositor, porque pessoalmente, tem medo. Quanto ao outro ponto importante da reunião, a assinatura do Tratado com a América Latina, esse objectivo também caiu com o contributo dos agricultores franceses e dos fracos líderes gauleses. O espectáculo da saída em glória do Conselho Europeu com a volta de honra feita pelos primeiros-ministros da Hungria e da Bélgica, foi esclarecedor sobre quem ganhou e quem perdeu a noite e o futuro. As declarações de vitória acompanhadas dos insultos à Europa que foram atirados aos jornalistas por Orban e De Wever na madrugada de 19 de Dezembro, ficam também para História.
O que pode acontecerApesar de tudo que possa ser dito para nos adormecer, uma Europa assim não vai longe. Quando o líder político da primeira potência europeia coloca o seu prestígio na defesa de uma solução para servir os interesses básicos da Europa, sendo derrotado por uma coligação de países minúsculos e grandes, mas todos financeiramente falidos, as consequências parecem inevitáveis. Em primeiro lugar, Merz ficou com a sua posição interna fragilizada e o seu papel futuro de condução dos negócios europeus condicionado. Para uma equipa que só tinha um líder credível, não é um bom augúrio. Mas sobretudo o que aconteceu vai fazer acordar na Alemanha as dúvidas sobre se a generosidade para com os parceiros europeus deverá ser mantida. Tanto para as forças no governo como na oposição antieuropeísta, não vão faltar argumentos sobre se fará sentido continuar a utilizar o poder financeiro da Alemanha para proteger as dívidas públicas da França e da Itália, quando os seus líderes humilham o chanceler. Para os mais distraídos vale a pena clarificar que na realidade, sem a protecção do BCE, que é o mesmo que dizer do Bundesbank, a França e a Itália serão obrigadas a percorrer um capítulo Troika que trará cortes nos salários, nos benefícios sociais e nas ajudas aos agricultores. Será sem dúvida um profundo trauma, mas que se enquadra inteiramente num cenário de possível dissolução da União Europeia.
Concluindo temos as seguintes questões: Parece, ou não, que América, Rússia e China não querem uma força unida europeia? Parece, ou não, que a UE é incapaz de resolver a sua impotência? Porque como dizia alguém, em política o que parece é
E na situação em que estamos, a percepção parece ser mesmo a realidade
observador




