Apocalipse, ainda não

A 21 de Fevereiro de 2023, a comissária europeia Kaja Kallas, então primeira-ministra da Estónia, declarou que “a emergência climática é um risco para a paz” e que “não há dúvida que as alterações climáticas estão a tornar o mundo um lugar mais perigoso”.
No dia 14 de Maio do mesmo ano, o comissário Michael McGrath, na altura membro do Governo irlandês, afirmou que “a emergência climática é o maior desafio enfrentado pela humanidade”.
Também em 2020, a 21 de Janeiro, a comissária Teresa Ribera, à época vice-presidente do Governo espanhol, proclamou a “emergência climática” e a necessidade de ir “muito mais depressa” na prossecução de políticas de transição energética.
Em Março desse ano, Ursula von der Leyen disse: “Hoje, as emissões globais continuam a subir. Isso tem de mudar urgentemente”. Já este ano, no Fórum de Davos, a Presidente da Comissão avisou que “o mundo está numa corrida contra o tempo” para evitar catástrofes climáticas.
Logo em 2019, Frans Timmermans (então Primeiro Vice-Presidente da Comissão Europeia) alertava para o facto de o clima ser “um tema existencial para a Europa e para o mundo. Não temos um momento a perder na luta contra as alterações climáticas”.
O nosso António Costa, ainda como Primeiro-Ministro de Portugal, disse em 2023 que “O planeta provavelmente pode sobreviver à humanidade. Mas não há uma ‘Humanidade B’. O que sabemos com certeza é que a humanidade não sobreviverá a si própria”. E em Novembro deste ano, já Presidente do Conselho Europeu, Costa advertiu: “A janela de oportunidade para agirmos e evitarmos impactos irreversíveis sobre a humanidade e a natureza está a fechar-se rapidamente. A ameaça existencial representada pelas alterações climáticas sustenta precisamente o compromisso inabalável da União Europeia com o Acordo de Paris”. E prometeu: “Mantemos plena dedicação à sua ambição e ao seu espírito multilateral. E faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para manter o objetivo de limitar o aquecimento global a 1,5°C acima dos níveis pré-industriais”.
Isto é a sério, malta. Enfrentamos uma “emergência”, uma “ameaça existencial”, as medidas são “urgentes”, estamos numa “corrida contra o tempo” e “não há um momento a perder”, porque a “janela de oportunidade está a fechar-se rapidamente” e “não há humanidade B”. Por isso vai-se fazer “tudo que estiver ao alcance”. Bem sei que é costume ouvir este discurso todos os dias, em vários sítios. Mas estas tomadas de posição são feitas por quem tem poder na Europa, quem consegue mesmo salvar a humanidade da extinção iminente e quem se comprometeu a fazê-lo, custe o que custar. Graças a Deus, os mais altos dirigentes da União Europeia há muito que sabem do cataclismo que nos ameaça e têm preconizado acção cabal, drástica e expedita, que implica a proibição do uso de combustíveis fósseis imediatamente. Agora! Já! Para ontem!
Entretanto, na semana passada, a Comissão Europeia recuou e, afinal, ainda vai ser possível comprar um carro a gasolina depois de 2035.
Não se percebe. Se a humanidade está condenada, a não ser que paremos imediatamente de queimar combustíveis fósseis, que sentido faz continuar a queimar combustíveis fósseis? É suicídio. Quando um médico diz a um paciente: “O senhor nunca mais pode tocar em álcool. A próxima bebida que tomar vai matá-lo”, a resposta não pode ser: “Que maçada. Vou então parar. Deixe só esvaziar a adega que acumulei nos últimos anos e depois entro logo em abstinência”. Que grande borrada. Pelos vistos, os carros eléctricos, quando metem a marcha-atrás, em vez de pipi, fazem pupu.
É como se na fita “Armageddon”, em que um meteorito se prepara para destruir a Terra, o Bruce Willis aceitasse a missão de ir lá acima dinamitar o gargantuesco calhau, mas pedisse para adiar uma semana, pois já tinha férias pagas num resort all inclusive em Cancun e a tarifa era não-reembolsável.
Portanto, se há tempo para adiar a única solução que afasta o perigo existencial, é porque afinal a solução não é única e o perigo não é assim tão existencial. Como se terá processado essa descoberta?
O meu palpite é que alguém na União Europeia pegou na sua calculadora a energia solar e fez as contas. Teve de esperar alguns dias até ter pilha suficiente (nesta altura do ano não há muitas horas de sol em Bruxelas), mas conseguiu efectuar as operações necessárias para perceber que: as alterações climáticas não são assim tão graves; não exigem acção urgente; as actividades humanas não são a principal influência nas alterações climáticas; as medidas que tomamos não têm grande impacto num sistema tão complexo como o clima; algumas medidas acarretam custos que prejudicam mais as pessoas do que os efeitos das próprias alterações; algumas medidas afectam a capacidade para mitigar e combater os efeitos das alterações climáticas (ou de fenómenos climáticos que nem sequer estão alterados, se limitam a continuar a ser o que sempre foram).
Munidos dessas informações, concluíram que, como afinal não está iminente a nossa destruição e amanhã ainda cá estamos, se calhar convém não rebentar com a economia. Até porque, como parte da transição energética implica uma electrificação geral da sociedade, os aumentos de produção de energia para abastecer transportes, indústria, servers para clouds, IA e outras modernices, não vão ser conseguidos à custa de fontes intermitentes. Junte-se a isso a impreparação das redes (como se viu no recente apagão), a pouca capacidade das baterias e a intransigência das populações em ter minas de lítio ou ventoinhas gigantes na sua terra, e não é só nos carros que a UE vai ter de recuar.
A outra hipótese é isto não ter sido uma descoberta. Não foi incompetência e ideologia, juntamente com o fanatismo de uma seita milenarista que apregoa o fim do mundo a quem não se penitencia comprando um Tesla e só tomando banho dia sim, dia não. A UE já sabia, mas foi sonsa e alinhou com este pânico moral histérico para ter ganhos políticos. Realmente, a ameaça de colapso climático dá muito jeito. Serve para justificar medidas onerosas e impopulares que os governos queiram tomar e, ao mesmo tempo, fornece boas desculpas para quando os governos não agiram para evitar tragédias. “É verdade que não limpámos as sarjetas, mas esta tempestade, por causa das alterações climáticas, foi muito mais tempestuosa que o costume. Não havia nada a fazer”.
Felizmente, para nos safarmos desta incúria e podermos fugir numa emergência das verdadeiras, ainda vamos ter fiáveis carros a diesel por mais alguns anos.
observador



