Cannes: inquéritos à democracia e à falta dela

Cannes apresentou à entrada deste fim de semana dois filmes que, só por si, justificaram por inteiro a visita ao festival. Comecemos pelo ótimo Dossier 137, com mais um papel fabuloso de Léa Drucker, e a pergunta que o filho menor às tantas coloca à personagem dela: “Mãe, porque é que toda a gente odeia os polícias?”. No novo filme de Dominik Moll (alemão há muito radicado em França), a personagem de Léa, Stéphanie, não é uma polícia qualquer. O trabalho dela é policiar os colegas. Ou seja: investiga casos de abusos e violência exagerada praticados pelas autoridades durante o período que levou para as ruas os denominados “coletes amarelos.” De facto, tantas queixas houve contra a polícia francesa naquela altura que o Ministério do Interior do país criou uma comissão de inquérito para investigar os casos mais graves.
Em que aposta Moll? Numa análise detalhada, cruzando ficção com rigor documental, ao funcionamento da polícia enquanto instituição do Estado. No fundo, o filme acredita que ao dar voz à obstinada Stéphanie, fazendo do dela o nosso ponto de vista, conseguirá testar a democracia e interrogar a hipocrisia de um Estado francês que, nos seus bastidores, defende a repressão policial. Essa repressão teve efeitos: manifestantes amputados, cegos, incapacitados para o resto da vida (como aquele rapaz com grave lesão no crânio causada por uma bala de borracha).
À semelhança do que já acontecera em A Noite do Dia 12, filme anterior de Moll, Dossier 137 segue-se como um thriller político complexo, alimenta um “who dunnit” em que a busca pela verdade corre o risco de redundar numa missão inútil. Já em Eddington, novo filme de Ari Aster depois do penoso Beau is Afraid, o salto qualitativo é notório, com uma farsa sobre o absurdo que vivemos durante a pandemia do Covid. Joaquin Phoenix é o xerife da terreola do Novo México que dá título ao filme, promove-se nas redes sociais com uma preocupante dependência e entra em choque com o presidente da câmara (Pedro Pascal), em parte por recusar-se a usar máscara e cumprir as regras sanitárias a que fomos sujeitos.
observador