Câmaras lançam projetos mas resposta continua insuficiente

A crise da habitação tem estado na ordem do dia e ‘obrigou’ as câmaras municipais e o Governo a tentarem dar uma resposta a este problema que teima em não ver luz ao fundo do túnel. A verba destinada para construção de novas casas estava contemplada na famosa bazuca, mas o Executivo acabou por transferir estes projetos para outras fontes de financiamento para não correr o risco de não os conseguir executar a tempo. E no recente pedido de reprogramação a Bruxelas, o Governo referiu que estas alterações «não diminuem o alcance dos projetos» previstos, afirmando que «das 6.800 casas do parque habitacional a custos acessíveis, 3.300 manterão o financiamento PRR [Plano de Recuperação e Resiliência], passando as restantes a ser financiadas através de um empréstimo do Banco Europeu de Investimento (BEI)».
Este problema de falta de habitação não é apenas um problema português, daí o Parlamento Europeu ter criado uma Comissão Especial sobre a Crise da Habitação na União Europeia, «um comité especial que tem como objetivo propor soluções para uma habitação condigna, sustentável e a preços comportáveis dedicado a enfrentar a atual crise habitacional em toda a União Europeia».
Com uma duração de um ano, «o comité irá trabalhar intensivamente no mapeamento das necessidades habitacionais, particularmente para os grupos de baixos e médios rendimentos, assim como avaliar o impacto económico da escassez de habitação em questões como pobreza, desigualdade e exclusão social».
É certo que do lado das autarquias vão sendo dadas algumas respostas em termos de oferta, mas por mais que se multipliquem em soluções ficam sempre aquém das necessidades. Um desses exemplos é a Câmara Municipal de Lisboa que, no final do ano passado, aprovou a primeira Carta Municipal de Habitação, que define um plano de 10 anos para aumentar a oferta de habitação pública, com um investimento de 900 milhões de euros e metas como a construção de três mil novas casas até 2028. O autarca chegou a referir que a ideia passa por «urbanizar terrenos públicos parados, como o Casal do Pinto e o Vale de Santo António, e destinar terrenos com capacidade para 500 casas em cooperativa, entre outras medidas essenciais para concretizar as prioridades ambiciosas estabelecidas pelos novos tempos: aumentar e melhorar a oferta de habitação pública, reduzir as assimetrias no acesso à habitação e regenerar a cidade esquecida».Ao Nascer do SOL, fonte da autarquia lembra que a Carta Municipal de Habitação define três prioridades de ação: aumentar e melhorar a oferta de habitação, reduzir assimetrias no acesso à habitação e regenerar a cidade esquecida. «O primeiro grupo de medidas engloba todas as construções de casas, reabilitações de casas, compra de edifícios ara habitação, etc. O segundo grupo de medidas engloba todos os programas de acesso à habitação municipal – programa de arrendamento apoiado para os mais carenciados, programa de renda acessível para as classes médias e subsídio ao arrendamento, bem como outras medidas específicas para profissionais deslocados e o terceiro grupo de medidas engloba toda a regenerações de zonas com terrenos municipais vazios, zonas degradadas ou com habitações ilegais ou não regularizadas no cadastro, etc.», explica.
O que está em marchaO Plano de Urbanização do Vale de Santo António, em Lisboa, é um desses casos e promete ser um novo bairro dentro da cidade. A intervenção será feita nas freguesias de São Vicente e Penha de França, num total de 48 hectares. O plano que, de acordo com as contas da autarquia, representará um investimento total de 750 milhões de euros, a ser realizado num horizonte de 12 anos, prevê a construção de um parque urbano, três quilómetros de rede ciclável e 2.400 casas a preços acessíveis.Outro exemplo é o projeto em Entrecampos, em Lisboa, numa área total de 25 hectares, prometendo uma nova centralidade na capital. O investimento ronda os 800 milhões de euros, dos quais 100 milhões são da responsabilidade da autarquia. O projeto prevê obras de urbanização, reabilitação de arruamentos existentes e a construção de equipamentos sociais e culturais, assim como a criação de áreas verdes.
Outra aposta será na Matinha. Localizado na frente ribeirinha de Marvila, entre o Parque das Nações e a zona histórica de Lisboa, este projeto transforma uma área que esteve abandonada por mais de 25 anos. O projeto pretende reanimar a zona, mas também restaurar a ligação entre a cidade e o Rio Tejo. Com conclusão prevista para 2026 irá criar, no total, 830 novas habitações em Lisboa, 26 mil metros quadrados de novos espaços comerciais e de lazer.
O mesmo exemplo está a ser seguido pelo Porto. A autarquia no início do ano arrancou com a construção de mais um dos cinco blocos para habitação acessível em Lordelo do Ouro, o Edifício C, que envolve um investimento de 4,5 milhões de euros e soma às 91 habitações já em construção. Ao todo, serão construídas 291 casas, envolvendo mais de 60 milhões de euros nas imediações dos bairros Pinheiro Torres, Mouteira e Condominhas.Também o antigo edifício das Forças Armadas, no Porto, vai dar lugar a 40 casas destinadas a arrendamento acessível – inicialmente o número de fogos previsto era de 36. Aliás, este prédio integra um pacote de imóveis da Defesa que, em 2021, passaram para a esfera privada do Estado, com o objetivo de serem convertidos em 1.379 casas de arrendamento acessível. Há outros edifícios no Porto, Lisboa e Oeiras a aguardar a mesma intervenção. No entanto, estes são alguns exemplos do que está a ser feito pelas câmaras com vista a responder ao problema da habitação no nosso país com especial enfoque nas grandes cidades.
A polémica dos númerosOutra das soluções que apontadas para resolver o problema da habitação diz respeito aos imóveis ‘esquecidos’ por parte do Estado. Em 2022, o Estado tinha 717 imóveis devolutos na sua posse. Um ano mais tarde, depois da aprovação do programa Mais Habitação, o Ministério da Habitação socialista informou ter identificado mais de quatro mil imóveis devolutos com aptidão habitacional, entre terrenos e edifícios.
Mas é difícil perceber quantos imóveis há na totalidade até porque foi pedido um inventário em 2007, por José Sócrates, mas essa contagem correta nunca aconteceu e o que se sabe é que estes números estão registados em várias bases de dados dispersas.
Ao Nascer do SOL, Isaltino Morais, presidente da Câmara Municipal de Oeiras, classifica os números de «falácia». «Há uns palermas a dizerem que há 700 mil casas vazias, mas é mentira. Tenho três em Trás-os-Montes, quer ir para lá viver?», ironiza. E continua: «Se mandássemos estes tipos do Bloco de Esquerda viver para as casas desocupadas que há em Trás-os-Montes deviam andar satisfeitos».
«Realmente», diz, há 700 mil casas, «mas muitas delas estão incapazes de ser habitadas, nem estão nas áreas metropolitanas». Para ter uma ideia, continua o autarca, nos anos 60 e 70, «nesses 20 anos, construíram-se mais casas do que nos 50 anos seguintes. Essa gente só usa as estatísticas para o que querem, 40% dessas ditas casas estão totalmente degradadas a precisar de obras. Portanto, o que é que restará dessas ditas 700 mil casas? Claro que o Estado tem algumas, a Câmara não tem, mas isso é uma gota de água no oceano perante as necessidades que o país tem. Isso foi o argumento que foi usado até há coisa de seis meses. Nos últimos seis meses, até o Bloco de Esquerda já diz que é necessário fazer habitação pública, construção nova».Isaltino Morais dá algumas ideias daquilo que é preciso ser feito. «Há um ano, andava a dizer que era preciso fazer habitação pública, era o único, não havia mais ninguém a dizer isso. Todos diziam que era preciso baixar os impostos, era preciso acabar com os vistos gold, mas isso não revolve nada Precisamos de mais casas até porque, neste momento, temos mais 1,5 milhões de habitantes imigrantes», lembrando que há apartamentos de 50 metros quadrados, onde dormem 20 a 30 pessoas. «Isto tem alguma dignidade?», questiona, confessando receber todos os dias «famílias que dizem que vão ser despejadas porque não tem dinheiro para pagar a renda ou porque o senhorio quer aumentar a renda e por aí fora. Mas a generalidade dos partidos político já falam em habitação pública nova. Não há solução sem novas construções» (ver entrevista nas páginas 36 a 38).
Solução à vista?O que é certo é que os governos têm tentado fazer alguma coisa os os imóveis devolutos a fim de criar novas habitações.
O Governo AD quis «implementar uma estratégia que visa rentabilizar os imóveis públicos que estão (ou vão ficar) desocupados» e, por isso, no ano passado, colocou à venda edifícios do Estado sem aptidão habitacional, definindo uma lista com 19 imóveis públicos que tinha como objetivo vender este ano (ver infografia ao lado).
Nessa lista, sabe-se que muitos imóveis ficaram livres devido à transferência de ministérios e outras entidades públicas para o Campus XXI entre 2024 e 2026. O prédio para venda que com maior área situa-se na Avenida 24 de Julho, tendo sido ocupado pela Direção Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (17.514 m2). Outro imóvel é o edifício ocupado pela Presidência do Conselho de Ministros, em Campo de Ourique.
Pouco antes deste anúncio, o Governo tinha anunciado também a assinatura de um acordo com municípios para reutilização de imóveis públicos. Através da concretização destes acordos será possível assegurar a transferência de 27 imóveis do Estado que se encontram sem utilização ou devolutos, num valor global de 8,5 milhões de euros, para a gestão das autarquias.«Entre outros fins, os imóveis que fazem parte deste programa vão ser destinados a habitação a custos controlados, atividades de turismo e natureza, apoio à terceira idade e fins culturais e instalação de casas de apoio aos sapadores florestais», explicava o Executivo, adiantando que o programa foi celebrado com os municípios de Almeirim, Arcos de Valdevez, Castro Verde, Lamego, Leiria, Moura, Ourém, Portimão, Sabugal, Santo Tirso, São Pedro do Sul, Sernancelhe, Sintra, Tomar, Torres Novas, Torres Vedras e Vila Pouca de Aguiar.
Entre estes imóveis estão, por exemplo, a Quinta da Adega, em Arcos de Valdevez, num investimento de 2,5 milhões de euros, que vai ser transformada na Quinta de Ciência Viva. Junta-se a antiga alfândega de Portimão será requalificada num investimento de dois milhões de euros, para dar lugar ao Espaço Multiúsos Municipal. Outro dos imóveis é a Pousada da Juventude de Leiria que vai ser alvo de uma intervenção para a construção da extensão da Biblioteca Municipal. Terá um custo de um milhão de euros.
Em fevereiro deste ano, o Governo voltou a celebrar mais 14 acordos com 12 municípios para a transferência de competências de gestão do património imobiliário público sem utilização. Assim, foi possível assegurar a transferência de mais 22 imóveis do Estado, que se encontram sem utilização ou devolutos, para a gestão das autarquias, num valor global de 40 milhões de euros.
Estas transferências, em conjunto com as de outubro, significam que o Executivo já celebrou 33 acordos com 29 municípios, tendo sido transferidos 49 imóveis para reabilitação, cujo valor de investimento total é de cerca de 50 milhões de euros.
Neste caso, os acordos foram assinados com Albufeira, Alfândega da Fé, Alvaiázere, Arcos de Valdevez, Coimbra, Coruche, Guarda, Manteigas, Montalegre, Penedono, Portimão e Tomar.Recorde-se que, em maio de 2024, o Governo anunciou que ia criar um regime legal para «injeção semiautomática de imóveis devolutos» públicos no mercado, para habitação ou outros projetos relevantes, uma iniciativa que seria feita em conjunto com os vários municípios.
Por essa altura, o ministro da Presidência, António Leitão Amaro, avisou o fim ao arrendamento coercivo previsto no programa Mais Habitação, do anterior Governo socialista. «Este é um regime novo, em que a iniciativa de base local permite acelerar, identificar e pôr, depois da recuperação, à disposição, quer para habitação, quer para outros fins públicos relevantes, tantas centenas de imóveis públicos do Estado que hoje estão parados, enquanto há tantas pessoas sem casa ou casas caras demais», disse, explicando depois que caberia aos municípios identificar os imóveis públicos devolutos ou subutilizados e apresentar ao Estado, através da Estamo, um projeto de utilização «para um fim público que caiba dentro das atribuições do município e possa ser colocado em frutificação pelas pessoas».
Jornal Sol