A diplomacia do golfe: da Guerra Fria ao calor do momento

A obsessão – uma bênção para uns, uma maldição para outros – seguiu com o antigo general para a Casa Branca. Dwight pegara num taco pela primeira vez em 1912 e nunca mais parou. Para muitos norte-americanos, o hobbie do presidente era representativo das ocupações típicas da classe média. Outros ainda, sublinhavam a coragem e mais valia de regressar ao desporto depois de acusar debilidades físicas e problemas cardíacos. Em sentido inverso, a sua presença frequente em campo levou boa parte do público a questionar o seu real compromisso com a nação. Para os adversários políticos, estaria mais interessado em melhorar o seu handicap do que a terminar com o impasse na Coreia. No The New York Times, o senador do Wiscousin Joseph McCarthy chegou a comentar que Eisenhower devia passar “menos tempo no golfe” e dar mais atenção a libertar cidadãos americanos detidos pelos comunistas chineses.
A dedicação à modalidade não foi apenas motivo de polémica e arma de arremesso político. Num cenário de pós-guerra, os clubes recuperavam a sua vocação original, depois de contribuírem para o esforço militar durante o conflito e de terem visto os principais torneios em modo de pausa forçada, com interrupções nos EUA e no Reino Unido. O hiato ditara que outrora jogadores talentosos trocassem os tacos por armas, como Ben Hogan ou Sam Snead. Do lado britânico, Henry Cotton zelou pelo moral das tropas organizando partidas de golfe durante a guerra na Europa.
Lançada em 1950, a revista Golf Digest anunciava o boom do golfe no estilo de vida do outro lado do Atlântico, num país sedento de afluência e distração. Uma vez resgatado da hibernação forçada, um dos momentos mais simbólicos da expressão do jogo enquanto cenário da interação informal deu-se em 1957, no Burning Tree Club, em Washington DC. Treze anos depois do fim da II Guerra Mundial, a tensão entre EUA e Japão era aliviada com uma partida entre Eisenhower e o primeiro-ministro japonês Nobusuke Kishi, para uma inesperada cooperação entre nações que passou à história.
O próprio Ike declarou nas suas memórias "Os anos na Casa Branca: mandato para a mudança: 1953-1956" (1963) que no dia a seguir à sua eleição, em 5 de novembro, seguiu para Augusta para naquele ambiente de paz escolher os nomes do seu Gabinete e se preparar para a tomada de posse. Foi também ali que terminou de escrever o discurso do Estado da Nação de 1953.
Com uma joia inicial de 75 mil dólares, e fee mensal de 500, o clube exclusivamente masculino continua a funcionar. Era dos preferidos de Dwight, onde apesar da omnipresença do Serviço Secreto, algures atrás de uns arbustos, podia passar por mais um cidadão comum. “A primeira vez que vi o Presidente ele estava sentado tranquilamente, ninguém lhes prestava atenção. Deve significar muito para ele”, recordava um membro do clube a Alfred Toombs numa edição Coronet June de 1954.
Mais de 50 anos antes das manobras diplomáticas de Donald Trump no seu próprio campo de golfe na Escócia, Eisenhower foi dos presidentes norte-americanos mais comprometidos com a modalidade, oficializando o green como um palco do convívio frutífero em tempo de apaziguamento, e contagiando toda a Sala Oval. “Supostamente, o chão de madeira do escritório ainda tem marcas dos seus pontos de golfe”, chegou a escrever há alguns anos a revista Smithsonian sobre os hábitos de Ike. “Não só Eisenhower trouxe o golfe para a Casa Branca, ele trouxe a Casa Branca para o campo de golfe”, escreveu a Associação de Golfe Norte-Americana em 2016. “Muitas vezes jogava com celebridades, profissionais de golfe e políticos de alto escalão, como Bob Hope, Sam Snead, Ben Hogan, o senador Robert Taft e o general Omar Bradley.” Para criar um ambiente descontraído, Eisenhower também usou o campo de golfe como um lugar para construir relações com representantes de ambos os partidos políticos.”

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O primeiro-ministro do Japão Nobusuke Kishi of Japan (ao centro) com o embaixador japonês Koichiro Asakai (à esquerda) e o Presidente dos EUA Dwight D. Eisenhower, em junho de 1957 © Getty Images
Embaixador por excelência, em 2009 granjeou um lugar no World Golf Hall of Fame. Com uma relação cultivada em diferentes clubes privados por todo o país, o clã Eisenhower teve um vínculo particular com o Augusta National Golf Club em Augusta, Geórgia, o santo graal do Masters. Tornou-se membro do exclusivo reduto em 1948, logo no ano em que se apaixonou pelo destino. O próprio Ike declarou nas suas memórias Os anos na Casa Branca: mandato para a mudança: 1953-1956 (1963) que no dia a seguir à sua eleição, em 5 de novembro, seguiu para Augusta para naquele ambiente de paz escolher os nomes do seu Gabinete e se preparar para a tomada de posse. Foi também ali que terminou de escrever o discurso do Estado da Nação sobre o controlo internacional de energia atómica e a proibição universal das armas atómicas, proferido em abril de 1953. Por isso se chegou a escrever que “no calor da Guerra Fria, o golfe e Augusta foram a medicina de Eisenhower.”
Com o primeiro-ministro Kishi, que também nutria grande entusiasmo pelo desporto, o encontro teve um amável convite prévio. O secretário de Estado John Foster Dulles redigiu pessoalmente um telegrama datado de 17 de maio de 1957 para o embaixador americano no Japão, Douglas MacArthur II (o sobrinho do famoso general): “O Presidente teria muito gosto em jogar golfe com Kishi na tarde de 20 de junho, apesar de o Presidente admitir que o seu nível de jogo está num estado deplorável, esperando que Kishi não seja um especialista”. Na resposta, McArthur relata que quando se cruzou com o primeiro-ministro estendeu o convite como pedido. “Ficou encantado e disse que nunca se atreveria a isso, pediu-me que garantisse ao Presidente que não era especialista.” McArthur defendia ainda que o restante gabinete acreditava que tinha trazido “excelentes notícias desde que haviam começado as conversas preparatórias”.
No final do encontro, a Casa Branca anunciou que a partida tinha terminado empatada, sem divulgar resultados específicos. Venceu a diplomacia.
[Horas depois do crime, a polícia vai encontrar o assassino de Issam Sartawi, o dirigente palestiniano morto no átrio de um hotel de Albufeira. Mas, também vai descobrir que ele não é quem diz ser. “1983: Portugal à Queima-Roupa” é a história do ano em que dois grupos terroristas internacionais atacaram em Portugal. Um comando paramilitar tomou de assalto uma embaixada em Lisboa e esta execução sumária no Algarve abalou o Médio Oriente. É narrada pela atriz Victoria Guerra, com banda sonora original dos Linda Martini. Ouça o segundo episódio no site do Observador, na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube Music. E ouça o primeiro aqui]
Trump show em TurnberryVárias décadas mais tarde, Washington D.C. e Tóquio haveriam de estar ligadas através de outros protagonistas. Em fevereiro de 2017, Trump entreteve o primeiro-ministro japonês Shinzo Abe, nada mais nada menos que o neto de Nobusuke Kishi, no seu resort em Mar-a-Lago, usando o taco banhado a ouro que Abe lhe oferecera depois da vitória sobre Hillary Clinton, avaliado em mais de 3.700 dólares. Em 2019, quando repetiram a dose, já tinham jogado juntos por cinco vezes.
Mas nem nas perspetivas mais auspiciosas das crónicas da Golf Digest imaginariam que em 2025 um presidente norte-americano estaria a fazer de anfitrião num país que não o seu, e logo o que inventou o golfe. Pouco importa que o autor de desporto Rick Reilly tenha desmontado o seu suposto handicap de 2.8 na obra “Commander in Cheat: How Golf Explains Trump.” Esta semana, de uma só tacada, o Presidente dos EUA, desdobrou-se em receções diplomáticas (chegando a acordo com Ursula Von der Leyen para a aplicação de taxas de 15% na Unão Europeia) e aproveitou para inaugurar mais um campo, em Aberdeen, alargando o seu vasto portfolio. De visita à Escócia, berço da modalidade (e da sua própria mãe) fechou um acordo para tarifas de 15% — não sem antes medir forças com o seu filho Eric no campo de golfe Trump Turnberry, em Turnberry, na costa de Ayrshire.
O presidente sul-coreano Yoon Suk Yeol foi notícia por dois motivos, o primeiro por tentar impor a lei marcial, o segundo porque tem vindo a limpar os seus tacos de golfe na esperança de estabelecer uma relação com o presidente eleito Trump. Yoon começou a ser visto a bater bolas no range, treinando aquilo que foi lido como uma ofensiva de charme no âmbito da diplomacia do golfe.
Por curiosidade, o país baniu o golfe algumas vezes durante o século XV, sob argumento de que a atividade distraía os praticantes do treino militar e das proezas de cavalaria. O facto é que um movimento de ancas menos treinado pode ser fatal nos tempos que correm, ou pelo menos uma franca desvantagem quando se pretende cortejar o Presidente dos EUA. Ainda durante o primeiro mandato de Trump, Malcolm Bligh Turnbull, primeiro-ministro australiano entre 2015 e 2018, terá contado com a cunha do compatriota e ex-campeão mundial de golfe Greg Normal para trepar uns lugares na fila de telefonemas, enquanto líderes de todo o mundo se acotovelavam para saudar Trump depois da sua vitória em novembro de 2016. Não pense que é estratagema isolado: o presidente sul-coreano Yoon Suk Yeol, foi notícia por dois motivos, o primeiro por tentar impor a lei marcial, o segundo porque tem vindo a limpar os seus tacos de golfe na esperança de estabelecer uma relação com o presidente eleito. Yoon começou a ser visto a bater bolas no range, treinando aquilo que foi lido como uma ofensiva de charme no âmbito da diplomacia do golfe. Aliás, um funcionário presidencial na Coreia do Sul chegou a confirmar à agência Associated Press que o presidente tinha que “bater uma bola corretamente para por a conversa a andar” com o presidente eleito, que foi dito ter “excelente” habilidades de golfe.
Em junho de 2019, o presidente australiano Scott Morrison formalizou um convite para Donald Trump visitar a Austrália em dezembro para coincidir com o torneio bienal de golfe da Taça dos Presidentes. O encontro ficou pelo caminho, tal como o professa admiração inicial pelo norte-americano, mas o fun fact juntava-se a esta carteira de episódios.
A vizinhança face à imprevisível Rússia não deixou o presidente finlandês entre meias medidas. Em março deste ano, Alexander Stubb recebeu um convite de Trump para se deslocar a Mar-a-Lago para jogar uma partida com o presidente dos EUA. As palavras trocadas no green ali terão permanecido, mas o balanço no rescaldo do encontro teve algum impacto, pelo menos a curto prazo. Trump endureceu a sua posição sobre a Rússia depois de ouvir os argumentos de Stubb sobre a necessidade de impor um prazo para o Presidente Putin cumprir um cessar-fogo na Ucrânia. Mais: o país nórdico viu adjudicado um contrato para construir navios quebra-gelo no Ártico.

TOLGA AKMEN/EPA
Em julho de 2022, quatro anos depois de ter sido acusado de ordenar o assassinato do crítico saudita e jornalista do Washington Post Jamal Khashoggi, o príncipe herdeiro da Arábia Saudita foi recebido em duas capitais europeias, enquanto um torneio no clube de golfe Bedminster de Trump era financiado por dinheiro saudita. Em maio de 2025, foi a vez de Trump rumar aos Emirados e deixar-se conduzir num carro de golfe por Mohammed bin Salman. Apesar de ter negado que o assunto golfe tenha estado em cima da mesa, especula-se que o presidente dos EUA também tenha tido tempo para tentar negociar um acordo entre dois torneios de golfe rivais, o PGA Tour baseado nos EUA e a LIV Golf League, financiado pela Arábia Saudita — um entendimento a que o negócio familiar de Trump, que possui e gere vários campos em todo o mundo, não seria alheio.
Símbolo de um ethos presidencial muito próprio, o golfe conseguiu até vir à baila no famoso debate Trump-Biden que expôs a vulnerabilidade do então incumbente. Donald e Joe mediram desempenhos e provaram, mais uma vez, que o tópico é determinante no xadrez político norte-americano — e que há sempre alguém com uma calculadora na mão para traçar comparações.
Em maio de 2020, durante a pandemia de Covid-19, Trump foi criticado por jogar golfe duas vezes no fim de semana do Memorial Day, durante o qual o número de mortes devido à doença aproximou de 100.000. O presidente recomendava que olhassem antes para a assiduidade de Barack Obama. E os fact checks foram rápidos no gatilho.
Swing precisa-se (para resolver um problema interno de Obama)Talvez porque o golfe é praticamente uma instituição semanal na agenda de qualquer presidente dos EUA que se preze, o tópico adquire um peso que pode parecer bizarro fora de portas. Qual barómetro da sã convivência, ou sinal de crise nas relações, os analistas foram seguindo com cuidado o número de rondas de Barack Obama (2009-2017) desde que o 44.º Presidente tomou posse – e acima de tudo as notadas ausências ao seu lado. Os dados permitiam ler que havia um pequeno problema com o Congresso, e que se não fosse o golfe a dar uma ajuda, seria difícil desbloquear entraves.
Obama era descrito como o solitário que teimava em manter um núcleo restrito de parceiros no golfe — sem a capacidade de fingir que lhe apetecia privar e seduzir nomes para possíveis acordos bipartidários — e para mais esnobando alguns dos melhores golfistas do Congresso, como o democrata Mark Udall ou o republicano Saxby Chambliss. "Não pensem que já jogaram com Obama", alertava o The Washington Post em 2013.
Durante a crise orçamental de 2011, Barack tentou aproximar-se dos republicanos convidando o presidente da Câmara dos Representantes, John Boehner, para um jogo de golfe, mas os resultados terão ficado aquém dos pretendido depois desse jogada diplomática. Obama, fã acérrimo da modalidade, veio até defender-se da falta de disponibilidade pessoal e de sociabilidade de que era acusado. “Simpatizo bastante com o porta-voz Boehner. E quando jogámos golfe, foi ótimo. Mas não foi suficiente para chegar a um acordo em 2011. Quando celebrámos o piquenique do Congresso, todos vemos as fotos de família, a Michelle e eu a sermos simpáticos com todos, e passámos um dia agradável. Mas isso não os impede de irem para o Congresso acusar-me de despesismo socialista”, lamentou.
No ano seguinte, o problema de comunicação adensava-se. E o analista Charlie Cook fazia as contas: “Nas suas 104 rondas de golfe como presidente, Obama jogou com apenas dois membros do Congresso, de acordo com os registros de Mark Knoller, correspondente da Casa Branca para a CBS Radio e também o homem das estatísticas presidenciais não oficial”, sentenciava. A análise de Cook estendia-se ao basquetebol, mas também aí os relatórios de Knoller apontavam que, entre 40 jogos, apenas um incluiu membros do Congresso, quando, em 8 de outubro de 2009, Barack jogou com 11 membros da Câmara dos Representantes e vários membros de seu gabinete. “É mais fácil encontrar um membro democrata liberal que visitou a Casa Branca quando George H. W. Bush ou George W. Bush serviram do que sob Obama”, ironizava.
Em 2013, Paul Kane do Washington Post mantinha os graus de contundência: Barack não dominava o “jogo interno”, não entendendo como os jogos de golfe organizados pela Casa Branca eram um parâmetro fundamental do ponto de vista doméstico, para ilustrar o relacionamento frágil entre os dois poderes. “Amo a questão do golfe. Digo sempre às pessoas que nunca passaram algum tempo no Capitólio que tudo naquele lugar é impulsionado por relacionamentos. A maioria dos grandes negócios – ou grandes barganhas, que é como nós chamamos agora – são resultado de uma conexão pessoal entre o presidente e o líder do Congresso (ou dois). Eles devem gostar um do outro e, mais importante do que isso, é preciso haver confiança um no outro. Então, a minha pergunta é a seguinte: será que Obama gosta dos membros do Congresso? Ele é inteligente e deve entender o aspeto dos relacionamentos ligado à política.”

▲ Obama com o senador Mark Udall (segundo à esquerda), senador Bob Corker (direita), e senador Saxby Chambliss
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Obama era descrito como o solitário que teimava em manter um núcleo restrito de parceiros no golfe — sem a capacidade de fingir que lhe apetecia privar e seduzir nomes para possíveis acordos bipartidários — e para mais esnobando alguns dos melhores golfistas do Congresso, como o democrata Mark Udall ou o republicano Saxby Chambliss. “Não pensem que já jogaram com Obama”. Por fim, em maio de 2013, os jornais publicavam a aguardada foto do presidente na base aérea de Andrews, rodeado em campo pelo senador republicano Bob Corker, o republicano do Tennessee, partilhando o carrinho de golfe com Chambliss, republicano da Geórgia — e tentando implementar alguma da sua agenda através do Congresso.
2014 trouxe outras duas polémicas, agora num contexto mais alargado. Obama estava de férias em Martha’s Vineyard, Massachusetts, quando terroristas islâmicos divulgaram o vídeo de James Foley, brutalmente morto como vingança pelos ataques aéreos dos EUA contra o grupo ISIS. Barack condenou com veemência o assassinato. O problema, que o levou a ser acusado de falta de sensibilidade, veio imediatamente a seguir, quando foi fotografado a jogar golfe. O ano não terminou sem o encontro, agora nos greens do Hawai, em plena quadra natalícia, com o primeiro-ministro da Malásia. Neste caso, quem ficou debaixo de fogo foi Najib Razak, já que se entregava ao hobbie fora de casa enquanto o seu país lidava com graves inundações. Poucos meses depois, era a própria ligação de Obama ao líder malaio que passava a ser debatida. A estratégia comercial norte-americana de fazer um contrapeso ao poderio chinês através de novas amizades na região asiática era questionada, desde que Razak fora acusado de corrupção e iniciara uma violenta purga de críticos.
Yankees versus brits e um escritório no campo de golfeCom nuances, diferentes graus de entusiasmo e raras exceções de desinteresse absoluto, o golfe é uma marca existencial da generalidade dos mandatos do commander-in-chief. Coube a William McKinley (ainda no século XIX) o primeiro putting na Casa Branca mas foi William Howard Taft (1909-1913) quem estreou esta relação umbilical, trazendo a estratégia política para os mais insuspeitos terrenos e tornando a modalidade um caso sério no escrutínio dos norte-americanos. Que outro país atualizaria com tanta acuidade o seu presidentialgolftracker.com?
Keir Starmer está tão a léguas do fervor do golfe que em 2024 tornou-se o primeiro primeiro-ministro britânico a rejeitar a adesão honorária ao Ellesborough Golf Club, rompendo com uma tradição de 100 anos encetada por David Lloyd George. Ao contrário de Starmer, acusado de "ter um ódio aos ricos", anteriores líderes trabalhistas, como Clement Atlee e Harold Wilson ali jogaram regularmente.
O fervor nos EUA parece contrastar com a pontualidade do interesse na velha Albion onde os primeiros-ministros raramente jogam – ou admitem jogar — pelo menos na era contemporânea. Os registos do começo do século XX ditam outro cenário, no entanto. O político conservador e primeiro-ministro Sir Arthur Balfour (1902-1905), que aprendeu a jogar em North Berwick, é rotulado como “o pai do golfe inglês.” Teve em Herbert Asquith, David Lloyd George e Andrew Bonar Law três dignos sucessores, que entre os milhões de mortos que iam tombando nos campos de batalha perceberam que o jogo do golfe podia ser um utilíssimo escritório.
“Os alemães têm um respeito sincero pelo sentido de estado e diplomacia de Arthur Balfour e atribuem muito do seu sucesso à sua devoção ao golfe. Ele jogou no passado com Woodrow Wilson, tanto em Washington, em 1917, como na periferia de Paris, na primavera de 1919, enquanto o Congresso de Versalhes estava em andamento”, lia-se num perfil do The New York Times de 1 de janeiro de 2022. Apesar da desconfiança em relação ao jogo, os alemães reconheciam a experiência do britânico e as virtudes da modalidade, apesar de “cansativa”: conferia “as qualidades necessárias para qualquer trabalho de estadista ou diplomático”. Escrevera o Hamburg Fremdenblatt sobre Arthur Balfour, que o golfe “requer a paciência de um anjo, resistência sobre-humana e um temperamento equivalente”.

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Estadista e golfista, ou como era representado em 1896 Balfour © Getty Images
Três dias depois de a Áustria declarar guerra à Sérvia, fazendo soar todos os alarmes no continente, o ministro britânico da Guerra, Lord Kitchener, participou de uma reunião ao lado de Sir George Riddell, diretor-geral do jornal News of the World e principal ligação entre a imprensa e o governo durante toda a guerra. “Temos de fazer com que o povo britânico compreenda que estamos em guerra. Deviam desistir de jogar e ver jogos. A guerra é o jogo agora!”, terá dito Kitchener, segundo conta o Global Golf Post. Dois dias depois, Riddell estava a jogar golfe em Walton Heath ao lado de Lloyd George, o então chanceler do tesouro, em breve ministro das munições, e eventualmente primeiro-ministro nos dois últimos anos de conflito.
Redutos como o Walton Heath Golf Club, no sul de Londres, tornaram-se centro de discussão e decisão política de facto. Um dos membros mais populares terá sido Winston Churchill, que manteve o vínculo ao clube entre 1910 e 1965. Neste ou em outros destinos vocacionado para o jogo, a arquivo oferece-nos imagens nostálgicas de Churchill em campo, mas a versão mais certeira é de que aproveitava estes momentos sobretudo para desentorpecer as pernas. O filho Randolph chegou mesmo a admitir que o pai tinha dificuldade em manter a cabeça baixa e um drive que deixava algo a desejar. Em todo o caso, entre perder a sua posição no Gabinete em 1929 e entrar para o Gabinete de Guerra dez anos depois, Winston empregou boa parte do tempo a pintar, escrever e ocasionalmente a dar as suas tacadas. Em outubro de 2022, Boris seguia as pisadas do seu herói político. Ou pelo menos tentava.

▲ Winston Churchill a jogar em Cannes, em fevereiro de 1913
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Quanto ao conservador Harold MacMillan (1957-1963) era um ávido golfista e um dos amadores mais populares no Reino. Aliás, a dedicação adquire o seu ponto alto com a família real. Entre Windsor e Balmoral, persistem clubes privados frequentados ao longo de gerações. É sabido que Isabel II preferia os cavalos aos tacos, mas a sua mãe era bem mais recetiva à modalidade, surgindo em fotos ao lado do marido a jogar golfe. Nos anos mais recentes, um dos seguidores mais fiéis é o príncipe André. Entretanto proscrito, o irmão do Rei Carlos III chegou mesmo a ser anfitrião de Trump, mas com o ressurgimento do escândalo Epstein a salpicar também o presidente americano, não se imagina que possa voltar a ser visto com o atual presidente.
Além de seu prazer pessoal, a Família Real tem historicamente concedido o status de “Royal” a vários clubes de golfe pelo mundo fora, significando prestígio e uma conexão com a monarquia, que começou quando o rei William IV reconheceu a Royal Perth Golfing Society em 1833 e, mais tarde, o histórico Golf Club de St. Andrews.
Nada que possa entusiasmar o atual ocupante do número 10 de Downing Street, suspeita-se. Keir Starmer está tão a léguas do fervor que em 2024 tornou-se o primeiro primeiro-ministro britânico a rejeitar a adesão honorária ao Ellesborough Golf Club, uma instituição de Chequers, no Buckinghamshire, rompendo com uma tradição de 100 anos encetada por David Lloyd George. Numa carta dirigida ao presidente do clube a que o jornal The Telegraph teve acesso, um assessor do líder trabalhista disse que ele ficou “sensibilizado” com a oferta, mas “infelizmente” iria decliná-la, sem dar uma explicação. Ao contrário de Starmer, acusado de “ter um ódio aos ricos”, anteriores líderes trabalhistas, como Clement Atlee (1945-1951) e Harold Wilson (1974–1976) ali jogaram regularmente, incluindo depois de os respetivos consulados chegarem ao fim.
A afinidade entre buddies ficou ainda mais exposta em 2016, quando a BBC revelou conversas telefónicas entre Bill Clinton e Tony Blair. As transcrições incluíam assuntos para todos os gostos. O processo de paz na Irlanda do Norte, a guerra no Kosovo, a inspeção de armas no Iraque ou até o pesar partilhado sobre a morte da princesa de Gales. A descontração chegou ao ponto de Clinton sugerir que Blair o fizesse cidadão britânico e lhe permitisse concorrer ao parlamento escocês — "e que tivesse ao lado um bom campo de golfe".
Já David Cameron não se fez de rogado. Apaixonado pelo golfe, desfrutou do acesso a Ellesborough durante o cargo de primeiro-ministro. Em 2016, garantiu que não se embaraçou por completou, mas admitiu que levou uma pequena sova de Barack Obama.
Há ainda casos em que a notoriedade desportiva fica entregue ao cônjuge. “A fama do Sr. Thatcher como golfista, handicap 21, tem sido celebrada informalmente por alguns anos na revista satírica Private Eye.”, escrevia o The Guardian há 39 anos, sobre Dennis, marido de Margaret Thatcher.
Quanto a Blair, assim rezava o título no The Independent em 18 de maio de 1998: “Politics: Bill and Tony make a swinging couple”. Clinton, que foi outro ávido praticante da diplomacia do golfe e disputou diversas rondas com líderes mundiais, dava a primeira lição no green ao então primeiro-ministro britânico. “Os Clintons e os Blairs tinham passado a noite em Chequers e depois do pequeno-almoço o Presidente não resistiu a uma ronda de golfe num campo próximo. Depois de sua ronda improvisada de quatro buracos, o presidente esbanjou elogios com as habilidades de golfe do primeiro-ministro.”

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O então primeiro-ministro do Canadá, Jean Chretien, o Presidente dos EUA Bill Clinton e o primeiro-ministro de Singapura Goh Chok Tong © Getty Images
A afinidade transatlântica ficou ainda mais exposta em 2016, quando documentação exclusiva divulgada pela BBC revelava o teor das conversas telefónicas entre Bill e Tony. As transcrições incluíam assuntos para todos os gostos e espelhavam o grau de confiança entre interlocutores. O processo de paz na Irlanda do Norte, a guerra no Kosovo, a inspeção de armas no Iraque ou até o pesar partilhado sobre a morte da princesa de Gales. A descontração entre buddies chegou ao ponto de Clinton sugerir que Blair o fizesse cidadão britânico e lhe permitisse concorrer ao parlamento escocês — “e que tivesse ao lado um bom campo de golfe”.
Facto é que em 1997 e 2000, uma série de partidas de golfe entre o primeiro-ministro de Singapura Goh Chok Tong e o presidente dos EUA criou oportunidades que alteraram as relações tensas entre ambos os países e levaram ao início do Acordo de Comércio Livre EUA-Singapura. O ambiente distendido permitiu resolver incidentes diplomáticos então ainda frescos. Poucos anos antes, em 1994, um adolescente norte-americano chamado Michael Fay ganhou notoriedade internacional. A viver em Singapura, fora condenado a seis vergastadas e a uma sentença de prisão e multa por vandalizar carros e roubar sinais de trânsito. Clinton apelara a clemência perante as restritas leis daquele país. Em 5 de maio, Fay via a pena atenuada, mas os laços entre países ficaram comprometidos. Anos volvidos, o golfe enquanto lubrificante diplomático em casos como este merecia até recensões críticas.
Três exceções na Casa Branca e uma crise com reféns numa loja de golfeConsta que Woodrow Wilson (1913-1921) foi outro nome a adotar precocemente o golfe na Casa Branca, jogando regularmente, apesar da visão fraca. Como praticava muitas vezes no inverno, chegou a usar bolas pretas para poder encontrá-las mais facilmente na neve. Apesar das investidas, nunca terá atingido níveis exibicionais impressionantes, usando sobretudo os momentos para descontrair durante os tempos exigentes da I Guerra. Warren G. Harding (1921-1923) gostava tanto do jogo que até treinou o seu cão para ir buscar bolas. Já Calvin Coolidge (1923-1929) ficou conhecido por ligar tão pouco que quando saiu da Casa Branca deixou para trás o saco com os tacos. Segundo Don Van Natta, Jr., autor de “First Off The Tee”, Franklin D. Roosevelt (1929-1945) foi dos presidentes mais talentosos nesta matéria, até ser travado pela polio.

▲ O grupo exclusivo que se reuniu para ver o Presidente Warren G. Harding a jogar
Bettmann Archive
Esmagado pelo empenho do antecessor Eisenhower, John F. Kennedy (1961-1963) cultivava uma relação modesta com o desporto — pelo menos publicamente, já que em privado podia gabar-se de ter um handicap de um dígito (e fizera parte da equipa de golfe de Harvard). O sucessor Lyndon B. Johnson (1963–1969) não era grande apaixonado mas cedo compreendeu o papel desta ferramenta no networking, amaciando legisladores e empresários ronda atrás de ronda.
Richard Nixon (1969-1974) continuou a jogar enquanto vice de Einsenhower mas quando chegou a presidente ficou conhecido por mandar retirar o relvado no terreno da Casa Branca. “Acho que sua decisão de abandonar o golfe para fins políticos revelou algo fundamental sobre o lado negro de seu caráter ou talvez suas profundas inseguranças sociais, que o Sr. Nixon nunca se permitiu examinar”, diria o veterano Arnold Palmer. De resto, no início da década de 1970, não foi tanto a diplomacia do golfe mas antes a do pingue pongue que funcionou como quebra-gelo nas relações EUA-China e abriu caminho para a visita de Nixon a Pequim.
Gerald Ford (1974-1977) seria muito melhor do que a fama granjeada e reza a história que depois de perdoar Nixon a primeira coisa que fez foi ir à abertura do World Golf Hall of Fame e cumprir uma ronda com Jack Nicklaus, Arnold Palmer e Gary Player.
Foi no Los Angeles Country Club na terça-feira, 8 de junho de 1976, que o candidato presidencial republicano Ronald Reagan (1981-1989) descontraiu enquanto esperava que as urnas fechassem na Califórnia. A eleição ficaria para a próxima, desta vez com direito a um insólito no Augusta National Golf Club. Corria 1983 e o presidente procurava fazer uma pausa, instalando-se na casa de campo anteriormente usada por Dwight D. Eisenhower. O descanso foi interrompido quando um homem armado arrombou um portão com o seu camião e fez cinco reféns na loja do clube. Duas horas depois, foi preso. Ninguém ficou ferido e o atacante cumpriu três anos de prisão. Facto é que depois deste incidente, Reagan raramente voltou a ser visto a jogar. “Não vale a pena correr o risco a jogar golfe de que alguém possa ser morto,” terá dito o presidente, num episódio recordado pelo antigo membro da sua entourage Joseph Petro, autor de “Standing Next to History: An Agent’s Life Inside the Secret Service”, de 2005.

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Conduziu Thatcher no seu carrinho de golfe, jogou em Los Angeles (como na imagem), mas foi em Augusta que Ronald Reagan viveu um dos episódios mais inesperados © Getty Images
Na qualidade de neto de George Herbert Walker, antigo presidente da U.S. Golf Association, Bush (1989-1993) não deixava os créditos por mãos alheias. O filho, George W. Bush, era um jogador igualmente rápido, mas reformou-se com a guerra do Iraque, segundo adiantou à época ao Politico. “Não quero que alguma mãe cujo filho pode ter morrido recentemente veja o comandante supremo a jogar golfe”. Anos antes, não escapara às criticas quando falou à imprensa no arranque de uma ronda. “Eu apelo a todas as nações para que façam tudo o que puderem para deter esses assassinos terroristas. Obrigado. Agora vejam esta tacada.”
Três líderes mantiveram-se afastados do golfe, caso de Jimmy Carter, Harry Truman e Herbert Hoover. Bom, mais ou menos. Quando analisamos ao detalhe, parece que o desporto acaba sempre por cruzar-se de uma forma ou de outra com o destino dos Presidentes dos EUA, por mais que ele pretende manter a distância de segurança.
Há quem se interrogue se o destino do PGA Tour teria sido o mesmo se em 1980 Carter não tivesse cedido o segundo mandato a Reagan. Com a saída de Jimmy da Casa Branca, também Tim Finchem e Tim Smith despediram-se da Sala Oval para uma reforma forçada da política — os dois antigos conselheiros do Presidente tornar-se-iam administradores da PGA dedicando-se ao mundo do golfe profissional. Quanto a Truman, a lenda urbana garante que certo dia atingiu alguém na cabeça com uma bola de golfe. “Nunca joguei golfe na minha vida, nunca tive um taco nas mãos, é impossível”, sacudiu. E Hoover? Quem precisa de golfe quando tem um desporto com o seu nome? O médico da Casa Branca Joel T Boone inventou o Hoover-ball, uma combinação de ténis, voleibol e uma bola estilo pilates, que zelava pelo bem estar físico do presidente. “É seis vezes melhor que golfe”.
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