“Com a verdade me enganas”

Há duas semanas escrevi sobre a ligeireza com que muitos eleitores olham para o percurso de Luís Marques Mendes e sobre o risco para a sobrevivência do Regime, que está a ser subestimado, de se poder vir a eleger um presidente que, por trás de uma enorme simpatia, esconde o que de pior a política nos pode oferecer. Recebi e vi críticas, previsíveis, um pouco por aí, sobretudo dos poucos que ainda estão dispostos a rasgar as vestes na defesa do candidato, pelo que decidi voltar ao tema para o enquadrar e lhe dar mais profundidade.
Há um empobrecimento – não episódico, mas estrutural – na forma como avaliamos os políticos. Muitos dizem que tal é fruto da prudência, não fossem o respeitinho e o temor reverencial, virtudes quase-morais em Portugal. A verdade é que o que se pratica neste país à beira-mar plantado não é prudência, mas desistência. Que reduz a apreciação dos políticos ao conteúdo de uma certidão de registo criminal, como se todos os outros juízos fossem irrelevantes na hora de se avaliar os que exercem cargos públicos.
Acontece que a política se degrada não só quando se prova que os políticos praticaram crimes, mas muito mais quando, antes disso, se normalizam percursos feitos à sombra da influência, da proximidade ao poder, da habilidade em contornar sistemas que funcionam mal. E que talvez continuem a funcionar mal porque há sempre alguns que sabem muito bem como lucrar com isso.
Ora, descendo ao concreto, esta é a minha reserva fundamental ao perfil de Marques Mendes. Mendes é o expoente máximo daquele grupo de políticos que têm um toque de Midas: sem nenhuma habilidade técnica que o justifique, fazem profissão e acumulam riqueza na arte de transformar ineficiências públicas em oportunidades privadas. O que me inquieta no perfil de Marques Mendes, nesta eleição, não é saber se estamos perante um “bandido” (não é esse o meu terreno, nunca me substituí ao papel das magistraturas), mas a forma como escolheu fazer o seu percurso: décadas a acumular capital de influência, a tornar-se indispensável, a aparecer sempre por perto – perto demais – dos dossiers e dos protagonistas que fizeram o país perder (muito) dinheiro, prestígio e decência.
Como cidadãos passamos o tempo a lamentar o “estado geral das coisas”, a falar da “ameaça populista” e a praguejar contra a extrema-direita como se fosse um fenómeno meteorológico. Mas depois, na hora da verdade, é suposto não fazermos perguntas? Quando aceitamos que um percurso profissional feito apenas de intermediação, de facilitação, de acesso privilegiado, não levanta qualquer questão quanto à idoneidade para exercer cargos que exigem distância, contenção e autoridade moral, o problema deixam de ser os outros, para passar a sermos nós. Os grandes sócios das sociedades de advogados, os que acumulam boas remunerações, são conhecidos por serem especialistas, ou em Energia, ou em Banca e Seguros, ou em Fiscal, ou em Direito Laboral ou Contencioso Penal. Ora, Marques Mendes, até hoje, não nos conseguiu explicar o que é que “consulta”: sem nos dizer clientes, não consegue explicar o que faz, não tem nada para mostrar, nunca construiu nada, nem riqueza, nem conhecimento, nem obra, não nos diz qual é a sua “especial especialidade” técnica que leva a que clientes de uma sociedade lhe paguem valores muitos superiores ao que recebem a larga maioria dos restantes sócios da Abreu Advogados.
Quando anuímos que alguém que se posicionou para sistematicamente parasitar nas falhas de um sistema opaco seja depois apresentado como garante das instituições que esse mesmo sistema corroeu, estamos a passar a nós próprios um atestado de acefalia. Muito há ainda a saber-se sobre o perfil de Marques Mendes, mas algo eu já decidi: não quero um Presidente da República que recebeu avenças de empreiteiros com amnésia, que integrou durante longos anos o “Angola Desk” de uma sociedade de advogados, que manteve intimidade e proximidade, publicamente documentadas, com pessoas que pertencem a vários Eixos do Mal (no sentido que lhe é dado por Anne Applebaum no seu livro, “Autocracia Inc”). Que foi sempre solícito e profissionalmente dependente dos responsáveis por desvios de fundos de biliões de euros, que levaram o BESA, o BES, a SLN e o BPN à insolvência. Que foi escutado a pedir diversos favores para desbloquear burocracias de pessoas com poder, em áreas onde os cidadãos e os mais fracos continuam mergulhados sem respostas e sem solução. Entre tantas outras situações que nos deviam fazer corar de vergonha. Os portugueses que todos os dias se levantam de manhã para trabalhar já não aguentam os floreados de “transparência” de quem não consegue explicar, com mediana clareza e em dois minutos, o que faz e o que fez nos últimos anos.
Há que dizer que no caso do escrutínio a Marques Mendes, a desistência mais grave não é dos eleitores comuns. É, sobretudo, de algumas elites, porque muito do que está em causa não é fácil de ser apreendido pela maioria dos cidadãos. Falo das elites que sabem, que veem, que compreendem os mecanismos, mas escolhem não problematizar. Por ser mais confortável e obrigar a menos explicações. Por evitar conflitos dentro do próprio campo onde atuam, onde toda a gente se conhece. Há, frequentemente, entre certas elites, uma “decisão de não ver”, cegueiras voluntárias e convenientes que estão por demais estudadas (v.g., Max H. Bazerman, Rik Peels, Jason Dana) e explicam o que estamos a viver.
Até porque – e há que escrevê-lo sem eufemismos – as cegueiras voluntárias e convenientes em Portugal não são passivas, são em larga medida promovidas por algumas elites dominantes em parceria com alguns operadores mediáticos. Há nelas muito trabalho. É todo um exercício que insulta a nossa inteligência mas que sobrevive porque, quando alguém se atreve a questionar, quando os sinais óbvios são incómodos, a desistência transforma-se em resistência, logo surgindo os que abrem no debate público o espaço para a “dúvida conveniente”, um intervalo moral onde tudo acaba relativizado, explicado, suspenso. Não se afirma que algo é aceitável, mas apenas que “não é claro”, que “não é o mesmo”, que “não se pode comparar”, que merece o “benefício da dúvida”, que “só existe porque há eleições”. Trazem-se para a mesa argumentos laterais, desviando o debate do essencial. Este pequeno desvio – para uma certa zona de manobra moral – é suficiente para manter intacta a autoimagem e preservar o status quo. Não se trata de mentir, mas de arranjar maneira de não se querer saber, de criar ruído, de não se criar espaço para a avaliação política.
Nesta construção, o passado tem um papel instrumental fundamental. Na defesa do status quo, as mesmas pessoas que são tão lúcidas a analisar os “videirinhos” do passado são extraordinariamente indulgentes com os “videirinhos” do presente. O erro antigo é apresentado como óbvio, quase pedagógico. O julgamento é implacável. Já o que é atual é visto como complexo, cheio de nuances, beneficia sempre de imenso contexto. Este exercício não é inocente: ao exorcizar o passado, dá-se espaço à preservação do presente, deixando-o impune. Reforço: as democracias não se degradam apenas por atos ilegais. Corroem-se muito mais quando esta forma de não ver se torna hábito, quando a exigência se torna seletiva e quando o rigor é reservado apenas para os ausentes, os derrotados ou os já condenados pela História.
Depois perguntamo-nos por que razão as pessoas se afastam da política, desconfiam, ou aderem aos políticos que discursam na desesperança. A resposta é menos misteriosa do que parece: qualquer comum dos mortais já percebeu que há carreiras políticas construídas, não para servir as instituições, mas para sobreviver nelas – durante décadas. E isto consome. A confiança, o Regime. Não há ideia mais corrosiva do que a que o poder público e as elites políticas existem apenas para facilitar a vida a quem sabe navegar nos atalhos, e os manipula a seu favor.
Exigir mais não é radicalismo moral. É o mínimo cívico. Poupem-me ao conformismo bem-educado, conveniente e desistente – porque essa atitude paga-se caro.
observador



