Os portugueses, o Estado e a memória

A citação inicial nunca terá sido tão apropriada como nas últimas semanas. Da crise na Saúde, que as dificuldades nas Urgências evidenciam com dramatismo, à tragédia repetida dos incêndios e à incapacidade de o Estado funcionar em tempo útil e oportuno, tudo parece confirmar o conceito. A se associará uma relação difícil com a memória do passado, mesmo que recente. Será incapacidade de assumir os custos de uma estratégia e a coragem promover as opções tácticas adequadas ao tempo e à oportunidade, mediante acção coerente e continuada?
A crise na Saúde e o problema das urgências têm décadas. Sobre o assunto escreveram-se artigos, livros, emitiram-se com opiniões que pareciam indiscutíveis, fizeram-se promessas de acção. Mas só recordamos quando a tragédia bate à porta. E curiosamente sem pudor, repetem-se análises, promessas como se tudo fosse novidade. Perante um grave acidente com ferimentos extensos, um episódio cardiovascular agudo que poderá configurar risco de morte iminente, uma gravidez que se aproxima do termo sem local seguro assegurado para o parto, que poderão pensar o cidadão e as futuras mães? Não têm outra solução se não confiar na capacidade e eficácia dos serviços de urgência que os conduza, tão rápido quanto possível, ao hospital mais indicado para a resolução do problema. A eficácia do sistema de Urgência representa, muitas vezes, a diferença entre a vida e a morte, a cura e a incapacidade prolongada ou permanente, o sofrimento continuado ou uma vida normal. Ou o fim feliz de uma gravidez desejada. Como é que ainda persistem intermitências no funcionamento das Urgências hospitalares, maternidades a funcionar em yo-yo, ora sim ora não, mudanças súbitas de direcção porque a primeira estava encerrada? Porque não foi possível organizar e resolver o problema?
Proponho curta viagem ao passado. Portugal tinha um bom Sistema de Urgência Médica, seguro, confiável, competente e dedicado. Com bons exemplos de sucesso que nos colocaram no pelotão da frente na Europa: as Vias Verdes para o enfarte do miocárdio e AVC, as emergências vasculares, grandes traumatismos, etc. Comprovei na urgência hospitalar que servi, a excelente capacidade profissional dos seus recursos humanos, médicos, enfermeiros, técnicos e assistentes operacionais. Baseava-se em Emergência pré-hospitalar o INEM – com capacidade de centralizar a informação e organizar a resposta imediata e no local, orientar o transporte mobilizando os meios mais adequados de acordo com a natureza e gravidade clínica, assegurando comunicação directa com a instituição hospitalar de referência. A seguir Organização hospitalar hierarquizada e com uma estrutura integrada. Houve dificuldades? Claro que sim. Nem sempre se conseguiu a centralização de recursos de modo a assegurar o funcionamento 24h/7 dias semanais em especial nas instituições mais diferenciadas. Na última década em que dirigi o serviço de cirurgia vascular do HSM organizou-se com todos os serviços da área de Lisboa uma Urgência Metropolitana que assegurou sempre a prestação de cuidados. E nós teremos sido apenas a ponta do iceberg! E a comunicação fluía pelas vias competentes para o INEM, corporações de bombeiros, que sabiam antecipadamente que caminho seguir, sem a colaboração da informação televisiva! Centralização de recursos é o conceito chave. Não pode haver um hospital em cada bairro ou á porta de casa…! O que certamente obrigará a redefinir e reorientar a missão de algumas instituições. O que se passou recentemente em Obstetrícia Ginecologia com sucessivas maternidades a fecharem sequencialmente sem polos centralizadores e de referenciação verdadeiramente actuantes minimizando tempos de viagem, foi inaceitável. Admitir que possa continuar encontrando justificações potenciais terá um custo social e político inaceitável!
Revendo as sucessivas decisões tomadas é a aparente ausência de uma estratégia coerente fundada em avaliação rigorosa e que fosse orientando as intervenções necessárias. Porque as causas que foram persistindo eram conhecidas. Sabe-se: 50 a 60% da procura de serviços de urgência hospitalar é falsa urgência. Há claramente que distinguir a grande urgência médica que precisa de internamento hospitalar imediato, dos episódios agudos de doença, menos graves, mais frequentes na comunidade, que podem e devem ser avaliados por médicos com formação generalista, e cuja educação profissional os prepara para o reconhecimento clínico e para intervenção na maioria destas situações.
O que a realidade vem evidenciando e desde há anos é a resposta insuficiente do sector de Medicina Ambulatória pré-hospitalar centralizado nos Centros de Saúde. E daí consolidou-se uma cultura que assimilou a Urgência como porto de abrigo perante necessidades médicas sem resposta de maior proximidade e integrada na comunidade. Como ultrapassar esta dificuldade? No início da década de 80 o então governo da AD criou os SAP´s (Serviços de Atendimento Permanente) que ofereciam serviço clínico diurno e nocturno em Pediatria e Medicina Interna, com os especialistas hospitalares indo à Comunidade. O impacto na redução da procura hospitalar foi reconhecido, mas a experiência foi terminada com a mudança de orientação governamental. 40 anos depois aplicar-se-ia? A Medicina é mais complexa, a exigência maior, bem como a necessidade de recursos laboratoriais e imagiológicos basilares indispensáveis no diagnóstico, os quais devem estar disponíveis na intervenção pré-hospitalar.
Há cerca de 15 anos, como director da FMUL, convidei Lord Ara Darzi, que fora membro do governo de Gordon Brown na área da Saúde, para a abertura do ano académico. A sua conferência foi muito interessante; focou a necessidade de criação de novas estruturas intermédias entre Centros de Saúde ambulatórios e os grandes hospitais diferenciados, com meios laboratoriais e imagiológicos básicos. As circunstâncias políticas consequência da crise económica e financeira que também afectou Portugal, certamente contribuiu para que não tivesse impacto. Recentemente o Ministério da Saúde recuperou a iniciativa e optou por uma articulação público-social com a Misericórdia do Porto, certamente mais fácil e expedita que a mobilização dos Centros de Saúde, desviados desde o fim de 2022 para uma outra rota organizacional, outra iniciativa táctica – as Unidades Locais de Saúde! Não sabemos se a experiência foi avaliada, se foi eficaz e útil e quais os custos financeiros envolvidos. E se melhorou tempos de espera e racionalizou a procura hospitalar. Aparentemente não terá sido um sucesso para a solução dos problemas das Urgências! Mas recuperar e adaptar a orientação de constituir o terceiro pilar da reforma com a criação de Centros de Atendimento Clínico Urgente como estruturas intermédias pré-hospitalares com meios de diagnóstico, funcionamento nocturno capazes de rastreio e intervenção em situações que, sendo urgentes e relevantes para os doentes, não precisam de internamento hospitalar, poderia ser uma boa solução e eficaz. Até fidelizando os médicos e enfermeiros, evitando peregrinação à tarefa por outras instituições…
A saga do INEM e das suas disfunções, os atrasos inaceitáveis no atendimento de chamadas, as greves de zelo (?), a carência de meios de acção e transporte, alarmaram a cidadania. Concursos anuais para helicópteros que são necessários para o ano inteiro, 365 dias? E a uma empresa sediada em ilha mediterrânica conhecida como paraíso fiscal e que necessitava de aprovação prévia no concurso para se equipar? Em aeronaves e equipas profissionais? Helicóptero da Força Aérea que só poderia aterrar num heliporto no Minho, num moderno hospital que, não obstante a qualidade do seu pessoal e dos seus serviços, não é o único centro de referência regional e nacional para a grande urgência médica. Não há política de Saúde que resista. Configura o que há duas décadas designei por o Síndroma de Disfunção do Estado (SDE) ou, como alguém mencionou recentemente o Estado Incompetente. Como se verifica na incapacidade de organizar, planear e executar o combate ao flagelo dos incêndios, como ontem (17/8) ouvi ao Prof. António Nunes, Comandante do Corpo de Bombeiros, pondo o dedo na ferida com grande coragem, lucidez e contenção.
Teremos memória do passado recente? Eu recordei os primórdios da Pandemia COVID 19. Da coragem, dedicação, espírito de serviço de todos os profissionais de Saúde na fase pré-vacinação. Depois a entrevista notável do Presidente Ramalho Eanes que apelou à participação de todos os sectores, público, social e privado e das Forças Armadas, oferecendo à cidadania horizonte de tranquilidade e esperança, onde só prevalecia a indecisão e receio. E depois a actuação notável da Task Force para a Vacinação presidida pelo Almirante Gouveia e Melo, que mostrou como se organiza, se faz e se presta um serviço recuperando a dignidade e eficácia do Estado. Foram dois momentos definidores! Já nos teremos esquecido? Precisaremos agora de uma task force para as Urgências e os Incêndios?
Post-scriptum: Este foi o 3º artigo dedicado ao tema desde 2022. Em comum têm o lamento consubstanciado na citação usada em todos, a qual é a verdadeira essência das dificuldades que enfrentamos.
observador