De novo, nada de novo: Portugal em chamas

O país está a arder. E, sejamos claros, não é apenas Portugal: grande parte do sul da Europa está a arder. O fogo já não respeita fronteiras, nem mapas políticos, nem a arrogância de quem insiste em acreditar que os incêndios são apenas um problema geográfico, ou uma fatalidade “à portuguesa”. Esta ilusão, tantas vezes alimentada pela classe política e por alguns “sábios” de gabinete, esconde o essencial: estamos perante uma crise europeia, global, existencial.
No entanto, como em qualquer momento de catástrofe, há sempre quem aproveite a tragédia para colher dividendos políticos ou ideológicos. Há quem culpe os técnicos, quem grite contra conspirações, quem finja surpresa. Só quando as chamas batem à porta, quando o fumo invade as nossas casas, quando os noticiários abrem com números que já não cabem nas estatísticas, quando percebemos que “os próximos” poderemos ser nós, é que a opinião pública desperta. E, por breves instantes, ousa apontar o dedo aos responsáveis. Mas logo depois, a indignação esvai-se e tudo volta ao mesmo.
Um continente em combustão
Os números não deixam margem para dúvida: em 2024, arderam 13,5 milhões de hectares de floresta a nível global, uma área equivalente ao território da Grécia. Os incêndios representaram quase metade da perda de cobertura arbórea registada entre 2023 e 2024. Só na Europa, em 2025, já foram devastados 438.568 hectares, quase o triplo da área ardida no mesmo período de 2024. Trata-se da pior época de incêndios em duas décadas.
O fogo deixou de ser um fenómeno sazonal para se tornar numa ameaça estrutural. A paisagem mediterrânica, moldada por séculos de agricultura, pastoreio e floresta diversificada, está a transformar-se num pavio contínuo: secas prolongadas, monoculturas inflamáveis, abandono rural e fragmentação da propriedade criaram corredores de fogo altamente eficientes. A isto somam-se os ventos cada vez mais imprevisíveis e violentos, filhos das alterações climáticas, que tornam os incêndios mais rápidos, mais quentes, mais agressivos e menos previsíveis.
Não são apenas árvores que ardem. Ardem aldeias, ardem modos de vida, arde a economia local. Arde a saúde pública, o fumo tóxico dos incêndios é hoje reconhecido como uma ameaça mortal, embora sistematicamente subestimada. Ardem ainda os ecossistemas, transformando sumidouros de carbono em fontes de poluição, acelerando o colapso climático que já vivemos.
A resposta que não responde
Perante este cenário dantesco, seria de esperar que as políticas públicas estivessem à altura. A União Europeia dispõe, de facto, de mecanismos de coordenação, planos de resposta rápida, fundos de emergência. Mas a verdade é que a máquina continua refém da lógica reativa: apagar primeiro, pensar depois. Investem-se milhões em meios aéreos, mas migalhas em prevenção e gestão integrada do território.
O resultado é um círculo vicioso: gastam-se fortunas a combater incêndios cada vez mais impossíveis de combater, enquanto se negligenciam as medidas que poderiam, de facto, mitigar a sua ocorrência e intensidade. Para agravar, a alocação de recursos não segue, muitas vezes, critérios de risco real, mas de pressão política e mediática. O território continua desordenado, as comunidades continuam desprotegidas, os ecossistemas continuam a colapsar.
A pergunta que não quer calar
Diante desta evidência, a pergunta é inevitável: porque é que nada é feito? Porque é que soluções que existem, comprovadas e disponíveis, continuam sistematicamente adiadas ou ignoradas?
Todos sabemos o que precisa de ser feito:
Investir maciçamente na prevenção e não apenas no combate.
Reordenar o território, devolvendo à paisagem mosaicos agrícolas, pastagens e florestas diversificadas que dificultem a propagação do fogo.
Apoiar as comunidades locais, tornando-as protagonistas da proteção e não apenas vítimas da tragédia.
Adotar tecnologias avançadas de deteção precoce, monitorização e combate inteligente.
roteger a saúde pública, garantindo planos de contingência para ondas de fumo tóxico que já afetam milhões de pessoas.
Harmonizar a governação entre níveis nacional, regional e europeu, acabando com o jogo de culpas.
Tudo isto está ao nosso alcance. Mas não acontece. E não acontece porque falta coragem política, visão estratégica e, sobretudo, a perceção de que o que está em causa não é apenas o ambiente, mas a própria habitabilidade da Europa.
O fogo como espelho da nossa decadência
Se quisermos olhar de frente, os incêndios florestais são o espelho da nossa decadência coletiva: um continente envelhecido e centralizado, que abandonou o interior e a agricultura sustentável; uma política que vive de curto-prazismos e gestos mediáticos; uma sociedade que só acorda quando o fumo lhe entra pela janela.
A verdade nua e crua é que a Europa está a aquecer mais rapidamente do que qualquer outro continente. Isso significa que o que hoje vemos em Portugal, Espanha, Itália ou Grécia, amanhã será a realidade da Alemanha, da Polónia ou da Finlândia. Não há muralhas contra o fogo do clima.
Um ultimato à consciência europeia
É tempo de encarar os incêndios não como tragédias “naturais”, mas como sintomas de uma doença profunda: a incapacidade de gerir o território, de enfrentar as alterações climáticas, de proteger as pessoas e o futuro.
Se a Europa quiser sobreviver como espaço habitável, terá de mudar o paradigma: abandonar a ilusão de que se pode viver eternamente a reagir ao fogo e assumir, finalmente, uma estratégia de transformação estrutural. Caso contrário, não será exagero dizer: arde hoje Portugal, arde amanhã a Europa inteira.
observador