Civilização ocidental: o fardo do homem branco

[Este é o terceiro de oito artigos a propósito do livro “O mundo criou o Ocidente”, de Josephine Quinn. Os anteriores podem ser lidos aqui:]
“Ajudá-los a percorrerem a via da civilização…”A visão do homem branco como um ser superior, investido da nobre e ingrata missão de civilizar os restantes povos do planeta, teve a sua mais famosa síntese no poema “O fardo do homem branco” (“The white man’s burden”), de Rudyard Kipling, publicado no The New York Sun, a 1 de Fevereiro de 1899, e no londrino The Times, três dias depois, e que, embora tendo sido originalmente escrito três anos antes, para celebrar o Jubileu de Diamante da Rainha Victoria e as glórias do Império Britânico, foi interpretado, no contexto geopolítico de 1899, como incitando os EUA a abraçarem sem reservas a colonização das Filipinas (ver capítulo “O fardo do homem branco vs. A culpa do homem branco” em O que o mundo moderno deve à exploração de África e dos africanos).
O poema de Kipling estava imbuído do espírito do tempo: a 28 de Julho de 1885, no rescaldo da Guerra Franco-Chinesa de 1884-85, espoletada pelas reivindicações da França sobre o Vietnam (até então um estado-vassalo do Império Chinês), o então primeiro-ministro francês Jules Ferry, um entusiástico promotor da expansão colonial, tinha feito um célebre discurso no parlamento que estava em sintonia com o poema de Kipling: “Há que dizer abertamente que, com efeito, as raças superiores têm um direito sobre as raças inferiores […] E digo que têm um direito porque também têm um dever para com elas. É o dever de civilizarem as raças inferiores. […] Nos séculos precedentes, este dever tem sido frequentemente mal compreendido e não há dúvida de que, quando os soldados e exploradores espanhóis introduziram a escravatura na América Central, não estiveram à altura do seu dever de homens de raça superior. Mas defendo que, hoje em dia, as nações europeias cumprem com generosidade, grandeza e justiça esse dever superior de civilizar”.

Jules Ferry, retratado por Léon Bonnat em 1888
Data também de 1885 o célebre desaguisado entre Portugal e a sua histórica aliada, a Grã-Bretanha, envolvendo o “Mapa Cor-de-Rosa”, documento em que o primeiro manifestava a ambição de se apropriar dos vastos territórios compreendidos entre as suas colónias de Angola, a oeste, e Moçambique, a leste. A Grã-Bretanha, após alguns mal-entendidos, tergiversações e pequenas quezílias, acabou, em 1890, por rejeitar frontal e formalmente, as pretensões portuguesas, mediante a apresentação de um ultimato ao Governo de Lisboa, intimando este a retirar as tropas que eventualmente estivessem presentes no que é hoje o Zimbabwe (ainda que, à data, a presença de brancos, portugueses ou britânicos, no território em disputa fosse extremamente rarefeita e não permanente). A decisão do Governo britânico, vista pela opinião pública portuguesa como uma traição imperdoável, terá sido motivada pela intenção de obter controlo sobre o territórios africanos que permitissem estabelecer uma ligação ferroviária entre o Cairo e a Cidade do Cabo. O processo de decisão terá sido influenciado pelo lobbying do magnata Cecil Rhodes, que não só era um ardente promotor da ideia de uma zona ininterrupta de influência britânica estendendo-se do Mediterrâneo ao extremo austral de África, como, em 1899, fundara a British South Africa Company (BSAC), que, entre outros planos, almejava explorar os recursos minerais no que é hoje o norte do Zimbabwe – parte dos territórios reclamados por Portugal acabariam por ser colocados sob controlo da BSAC e, embora inicialmente denominados como “Zambesia”, ficaram informalmente conhecidos como “Rhodesia”, designação que a Grã-Bretanha adoptaria formalmente em 1898. Os principais interessados – os “nativos” – não foram, claro, ouvidos nem achados nesta disputa entre potências europeias e só ganhariam independência em 1964, como Zâmbia, e em 1980, como Zimbabwe.

“O Colosso de Rhodes”: cartoon de Edward Linley Sambourne, satirizando a intenção manifestada por Cecil Rhodes de estabelecer uma linha de caminho-de-ferro e outra de telégrafo entre o Cairo e a Cidade do Cabo. Publicado na revista Punch de 10.12.1892
Este foi um dos muitos atritos entre potências europeias durante a “Corrida a África” (“Scramble for Africa”), em que aquelas, tomadas por uma avidez descontrolada e acicatadas pela rivalidade, tentaram abocanhar a maior parcela possível do continente africano, no que pode ser visto como o momento culminante do imperialismo ocidental. Foram estas disputas que a Conferência de Berlim (1884-85) tentou resolver pacificamente, ao mesmo tempo que criava uma moldura legal para legitimar o esquartejamento do continente. O proeminente jurista belga Ernest Nys (1851-1920), catedrático de direito internacional na Universidade de Bruxelas e autor de robusta e respeitada bibliografia sobre esta matéria, proclamaria que as decisões da dita conferência evidenciavam “a determinação das potências europeias em cuidar dos africanos e ajudá-los a percorrerem a via da civilização” (ver capítulo “Graus de civilização” em Governar o mundo: Como havemos de viver juntos?).
O Islão como ameaça à “civilização da moderna Europa”Em 1899, ano da publicação do poema de Kipling acima mencionado, outro homem de letras britânico, que viria a ser agraciado com o Prémio Nobel da Literatura, publicou um livro em que tecia estas considerações sobre a civilização islâmica: “Quão medonhas são as maldições que o islamismo lança sobre os seus devotos! Para lá do frenesim fanático, tão perigoso no homem como a hidrofobia no cão, temos também a apatia fatalista, não menos assustadora. Este efeitos são evidentes em muitos países. Os hábitos imprevidentes, as práticas agrícolas desleixadas, os métodos comerciais indolentes e a insegurança dos bens e das propriedades reinam onde os seguidores do Profeta governam ou vivem. Uma sensualidade decadente priva estas vidas de elegância ou refinamento, e até mesmo de dignidade e santidade. […] Alguns indivíduos muçulmanos podem exibir esplêndidas qualidades. Alguns milhares deles convertem-se em corajosos e leais soldados da Rainha, pois todos sabem enfrentar a morte. Mas a influência da religião paralisa o desenvolvimento social dos que a seguem. Não há no mundo força mais retrógrada. Longe de estar moribundo, o islamismo é uma fé militante e proselitista. Já alastrou pela África Central, fazendo surgir guerreiros destemidos na sua peugada. E não fosse a Cristandade estar resguardada pelo robusto braço da ciência – a ciência contra a qual em vão lutou – e a civilização da moderna Europa poderia ser derrubada, como o foi a civilização da Roma Antiga”.
O livro em questão, The River War, é um relato detalhado, espraiando-se por dois volumes e um milhar de páginas, da conquista do Sudão, entre 1896 e 1899, por um exército anglo-egípcio comandado por Lord Kitchener. O autor, que testemunhou directamente o conflito durante alguns meses de 1898, na dupla função de oficial do Royal Regiment of Horse Guards e de correspondente de guerra do Morning Post, tinha, à data da publicação de The River War, apenas 25 anos e viria a tornar-se num dos mais proeminentes estadistas do século XX – chamava-se Winston Leonard Spencer Churchill.

Ilustração de Angus J. McNeil para o livro The River War, de Winston Churchill, mostrando os procedimentos para a instalação do telégrafo no Sudão
O facto de Churchill, um símbolo da resistência da civilização ocidental à barbárie nazi e uma figura que colhe o apreço ou, pelo menos, o respeito de diversos quadrantes ideológicos (é frequente ouvir-se aos comentadores de actualidade política o lamento “Já não há líderes como Churchill!”), ter vertido no papel tais pensamentos tem sido explorado por alguns políticos de extrema-direita para conferir credibilidade às suas próprias convicções islamofóbicas. Foi o caso do britânico Paul Weston, do partido nacionalista Liberty GB, e do holandês Geert Wilders, líder do Partido pela Liberdade (que, sendo um provocador, fez questão de citar um excerto de pendor anti-islâmico de The River War numa sessão na Câmara dos Lordes para que fora convidado).

O Império Britânico na sua máxima extensão, no início do século XX
No célebre ensaio On liberty (1859), o filósofo britânico John Stuart Mill faz uma apaixonada apologia da liberdade individual, proclamando que, no que respeita a si mesmo, “o indivíduo é soberano”, e defendendo limitações ao controlo exercido sobre o indivíduo pela sociedade e pelo Estado, entendendo que estes só deveriam determinar ou restringir a conduta do indivíduo se esta for danosa para os outros. Todavia, no parágrafo seguinte, Mill introduz uma ressalva: “Esta doutrina só deve ser aplicada a seres humanos na maturidade das suas faculdades. […] Aqueles que ainda se encontram num estádio que requer que sejam cuidados por outros, devem ser protegidos das suas próprias acções, bem como contra ameaças externas”. Assim sendo, “o despotismo é uma forma legítima de governação quando lidamos com bárbaros, desde que a finalidade seja o seu progresso e os meios são justificados se essa finalidade for cumprida. A liberdade, como princípio, não tem aplicação a qualquer estado de coisas anterior à altura em que a humanidade se tornou capaz de progredir pela discussão livre e equitativa”, um patamar que, para Mill, os povos de África, da Ásia e da Oceânia ainda não tinham alcançado.
Mill reforçaria esta ideia nesse mesmo ano, no breve ensaio “A few words on non-intervention”, em que discute as circunstâncias em que poderá ser legítimo um país intrometer-se na soberania de outro: “Supor que as mesmas práticas internacionais e os mesmos padrões de moralidade internacional aplicáveis entre duas nações civilizadas se aplicam também entre uma nação civilizada e uma nação bárbara é um grave erro, em que estadista algum deverá incorrer. […] Caracterizar qualquer conduta para com um povo bárbaro como uma violação do direito internacional só mostra que quem tal defende nunca meditou no assunto. Poderá tratar-se de uma violação dos grandes princípios morais, mas os bárbaros não têm direitos enquanto nação. […] As únicas leis morais entre um governo civilizado e um governo bárbaro são as regras morais universais entre um homem e outro. Já entre povos civilizados, membros de uma comunidade igualitária de nações, como seja a Europa cristã, a questão assume outro aspecto e deve ser decidida com base em princípios totalmente diferentes. Seria uma afronta discutir a imoralidade de guerras de conquista, ou até de conquistas decorrentes de uma guerra legítima, a anexação de qualquer povo civilizado por outro, salvo no caso de escolha espontânea do primeiro”.

John Stuart Mill, numa caricatura por Leslie Ward, sob o pseudónimo “Spy”, publicada na revista Vanity Fair de 29 de Março de 1873
Porém apesar de a maioria dos estadistas e dos pensadores oitocentistas – até aqueles que são celebrados como campeões da liberdade – não questionarem o altruísmo, o idealismo, a benignidade e a legitimidade da missão civilizadora do Ocidente junto dos povos “bárbaros”, no final do século XIX já começava a fervilhar a dissensão entre alguns intelectuais ocidentais. Um deles foi Georges Clemenceau, que, a 31 de Julho de 1885, demarcando-se do grupo parlamentar da esquerda republicana, de que fazia parte, ripostou asperamente ao famoso discurso feito pelo primeiro-ministro Jules Ferry, três dias antes: “Aqui temos o Governo francês a exercer o seu direito sobre as raças inferiores, guerreando-as e convertendo-as pela força aos benefícios da civilização. Raças superiores! Raças inferiores! Pela minha parte, fiquei particularmente desconfiado desde que vi sábios alemães a demonstrar cientificamente que a França estava condenada a ser derrotada na Guerra Franco-Prussiana, por a raça francesa ser inferior à alemã. Desde então, confesso, penso sempre duas vezes antes de encarar um homem ou uma civilização e de os declarar um homem ou uma civilização inferior!”.
Outro dos cépticos da superioridade da civilização ocidental era o cartoonista anglo-americano Victor Gillam, que, dois meses depois da publicação de “O fardo do homem branco”, dava a ver, na revista satírica americana Judge, uma visão bem mais ácida do “fardo do homem branco”, em que John Bull e o Tio Sam, personificando os imperialismos britânico e americano, respectivamente, carregam os povos “primitivos” na ascensão da íngreme e pedregosa encosta da “ignorância”, da “superstição”, da “opressão”, da “barbárie”, da “crueldade”, do “vício”, da “brutalidade” e do “canibalismo”, rumo ao topo onde os aguarda, resplandecente, a Civilização.

“O fardo do homem branco (com desculpas para com Rudyard Kipling)”, por Victor Gillam, revista Judge de 1 de Abril de 1899
Edward Burnett Tylor, autor de Primitive culture (1871), obra fundadora da antropologia cultural e uma das primeiras reflexões aprofundadas sobre a natureza das sociedades “primitivas” e das sociedades “civilizadas”, adoptou uma posição intermédia entre os críticos e os apologistas da civilização ocidental. Tylor propôs uma visão evolucionista que catalogava as sociedades em que três estádios de desenvolvimento – selvajaria, barbárie e civilização – mas defendeu, contra o pensamento então dominante na comunidade científica, que a humanidade é una, isto é, que as capacidades intelectuais do ser humano são as mesmas em todas as partes do globo, independentemente do estádio de desenvolvimento em que as suas sociedades se encontram. Tylor também recusou a ideia (também corrente) de que “a condição do selvagem resulta de uma degeneração a partir de um estádio superior” (Researches into the early history of mankind and the development of civilization, 1865), uma vez que “a história mostra que as artes, as ciências e as instituições políticas se originam sob formas rudimentares e, com o passar do tempo, vão tornando-se mais inteligentes, mais sistemáticas, mais perfeitamente dispostas ou organizadas” (Anthropology, 1881).

Edward Burnett Tylor (1832-1917), numa das suas últimas fotos
Nas décadas de 1920-30, as ideologias de extrema-direita, então em pleno florescimento, afadigaram-se a pintar o inquietante panorama de uma civilização ocidental em declínio, ou por ter “perdido a fé na sua superioridade intrínseca” (Salazar), ou por estar a ser sapada pelas maquinações do bolchevismo asiático e do judaísmo internacional (Hitler).
A perspectiva nazista sobre a questão civilizacional presumia que 1) O conflito racial era o factor determinante da história da humanidade; 2) A superioridade da civilização ocidental – ou melhor, da civilização germânica/ariana – era inquestionável (“toda a cultura humana, todos os produtos da arte, da ciência e da tecnologia são quase exclusivamente fruto da criatividade do ariano”, proclamou Hitler em Mein Kampf); e 3) O desenlace do “choque de civilizações” seria ditado pela lei do mais forte: “aquele que não é capaz de lutar pela vida tem o seu fim decretado pela providência. O mundo não foi feito para os povos cobardes” (Mein Kampf).

O ideal racial ariano, segundo Ludwig Hohlwein, num anúncio ao calendário de 1938 da Neues Volk (Novo Povo), revista mensal do Rassenpolitischen Amtes (Gabinete de Política Racial) do NSDAP (Partido Nazi)
Para o historiador Ian Kershaw, um dos esteios do imaginário nazi era o sentimento “de que a Alemanha era o derradeiro baluarte da civilização ocidental contra o bolchevismo asiático”, uma perspectiva paradoxal, já que o nazismo representava “um corte sísmico com os valores humanitários judaico-cristãos que tinham sido a base da civilização europeia” (palestra “Hitler’s place in history”, Open University, 2014). A propaganda nazi empenhou-se durante anos no mais descabelado revisionismo histórico, com o fito de obliterar esta contradição flagrante e para promover a ideia de que o III Reich representaria, antes, o culminar da civilização ocidental. Para este fim, apropriou-se do legado de figuras cimeiras da cultura europeia, germânicas (como Lutero, Dürer, Goethe, Beethoven, Wagner ou Nietzsche) ou não (como Sócrates, Leonardo, Michelangelo ou Shakespeare), e submeteu-o a tratos de polé, de forma a demonstrar que esta longa cadeia de criadores e pensadores tinha lançado os alicerces da mundividência nazi (a grotesca reescrita da história da cultura e das artes pelos nazis foi dissecada por David B. Dennis em Inhumanities: Nazi interpretations of the Western culture, de 2015).

A herança clássica revista pelo prisma ciclópico e abrutalhado do nacional-socialismo: Maqueta concebida por Hitler e Speer para Germania/Berlim, a capital de um Reich cuja zona de influência abarcaria quase toda a Europa Ocidental
No pacato rectângulo luso, o arianismo, as proclamações radicais e violentas, o registo bombástico-histérico e a imprevisibilidade de Hitler desagradavam a António de Oliveira Salazar, mas o governante português também foi irredutível defensor da vocação “missionária e civilizadora” de Portugal em África e na Ásia (ver capítulo “A missão civilizadora de Portugal” em Assim falou Salazar: Como lemos hoje aquilo que o ditador disse?) e lamentou que “esta Europa, que foi berço de nações e agente missionário da civilização que tão esforçadamente servimos e propagámos”, tenha abandonado tal empenho, por estar “cansada da sua mesma grandeza, em parte amolecida pelas coisas fáceis da vida” (mensagem aos Legionários Portugueses, por ocasião do 20.º aniversário da criação da organização, 03.12.1956). Salazar também subscreveu a tese de que “a civilização ocidental estava sendo desmantelada até aos alicerces e batida nos seus princípios fundamentais e nas suas criações por outros conceitos filosóficos, outras maneiras de encarar o homem e a vida, novas medidas de valor para as realizações do espírito” (mensagem aos Legionários Portugueses, na mesma ocasião).

Diogo Cão ergue um padrão no Rio Zaire, 1484: Postal de uma colecção consagrada ao Império Colonial Português
Ao longo do século XX e com rapidez e intensidade acrescidas após o término da II Guerra Mundial, a ideia de que a civilização ocidental era superior a todas as outras e de que estava investida da missão de levar a luz e o progresso ao resto do mundo foi perdendo crédito, ao mesmo tempo que 1) Diminuía o peso na sociedade da fé cristã (usualmente apontada como elemento central da civilização ocidental); 2) A globalização e os avanços na tecnologia de comunicações promoviam a circulação de elementos provenientes de todo o planeta e diluíam a identidade cultural do Ocidente e das nações que dele faziam parte; e 3) Os territórios colonizados pelas potências europeias reconquistavam – pacificamente ou pela força – a sua independência e eram, pelo menos formalmente, admitidos como pares no concerto das nações. A ferocidade e a barbárie de que algumas nações-farol da civilização ocidental – sobretudo a Alemanha – tinham dado provas durante a II Guerra Mundial também abalaram a pretensão de superioridade do mundo ocidental no plano dos valores.
Ainda assim, até às últimas décadas do século XX, a maioria dos cidadãos do mundo ocidental estavam razoavelmente orgulhosos da sua história e consideravam que o Ocidente tinha dado um contributo genericamente positivo ao mundo.
A civilização ocidental foi inventada em 1917?Todavia, no final do século passado, já fermentavam, no meio académico, teorias, de inspiração pós-modernista e neomarxista, que desvalorizavam a ciência ocidental (já que, alegava-se, não existem verdades absolutas e todo o conhecimento é relativo) e atribuíam à história o desígnio de pugnar pela justiça social, reparando séculos de opressão dos “povos originários” pela civilização ocidental. Um momento fundador deste movimento revisionista teve lugar em 1982, quando o historiador americano Gilbert Allardyce, no artigo “The rise and fall of the Western Civilization Course” (publicado em The American Historical Review, vol. 87 n.º 3), postulou que “o conceito de civilização ocidental era uma invenção moderna, cozinhada durante a I Guerra Mundial como forma de ludibriar os jovens soldados americanos a lutar e morrer nas trincheiras da Europa” (Stanley Kurtz, em The lost history of Western civilization, 2020). Segundo Allardyce, o conceito de “civilização ocidental” não existia antes da criação nas universidades americanas da cadeira de “Western Civilization” (informalmente designada como “Western Civ”), que, sendo de frequência obrigatória em muitos cursos, funcionava como forma de inculcar o “pensamento civilizacional” em boa parte da população com ensino superior.
A partir do final da década de 1960, os departamentos de humanidades das universidades americanas têm consagrado uma parte apreciável do seu tempo e energia à confecção de imposturas intelectuais que, desgraçadamente, têm obtido acolhimento entusiástico junto do meio académico internacional e, depois, têm alastrado à sociedade (ver Platão, Nietzsche e Mick Jagger: Entre guerras culturais e crises civilizacionais), mas a tese de Allardyce consegue a proeza de destacar-se pela negativa entre tanta estultícia e mendacidade.
Allardyce tinha obrigação de saber que 1) A noção de civilização ocidental tinha vindo a ser paulatinamente construída ao longo de séculos; 2) Os EUA sempre estiveram conscientes das suas afinidades civilizacionais com a Europa (vejam-se, por exemplo, as marcas da República Romana no seu sistema político, na arquitectura dos edifícios do poder e na toponímia), pelo que seria inútil inventar um argumento que as evidenciasse; 3) Os emigrantes alemães e os seus descendentes eram (e são) muito numerosos nos EUA (sobretudo no Midwest) e estavam tão integrados na sociedade americana como qualquer outra etnia de origem europeia; e 4) Promover a ideia de que todas as nações ocidentais partilham um sólido e venerando núcleo de valores, crenças e modos de vida funcionaria como argumento para dissuadir (e não persuadir) os americanos de combaterem os impérios alemão e austro-húngaro, uma vez que o mundo austro-germânico não só é um dos mais antigos e robustos pilares da civilização ocidental, como, em 1917, o seu contributo para ela era bem mais importante do que o dos EUA.
Aliás, a maior parte da propaganda de guerra produzida pelo Governo americano nessa época fez, como seria expectável, o contrário do que defende a tese de Allardyce: empenhou-se em dissociar os alemães do mundo civilizado, apresentando-os como “bárbaros”, “brutos” ou “bestas selvagens”.

Cartaz de propaganda convidando ao alistamento no Exército americano, a fim de exterminar a “besta” alemã, c.1917-18
Além do mais, é um facto que várias universidades americanas já ofereciam cadeiras com curricula similares ao “Western Civilization Course” (ainda que não com este título) 20 ou 30 anos antes da data oficial de nascimento de 1917, estipulada na tese de Allardyce, o que este tentou minimizar através de penosos contorcionismos argumentativos.
O facto de a tese de Allardyce enfermar de flagrantes debilidades de raciocínio e ser intelectualmente desonesta não impediu que tenha sido adoptada e promovida por historiadores proeminentes, como Lawrence W. Levine, autor de The opening of the American mind: Canons, cultures and history (1997), Lynn Hunt, autora de Writing history in the global era (2014), e Andrew Hartman, autor de A war for the soul of America: A history of culture wars (2015). Segundo Stanley Kurtz (The lost history of Western civilization), a tese de Allardyce é um bom exemplo paradigmático de “como um naco improvável de radicalismo académico, completamente desconhecido do público em geral, pode ser capaz de virar a academia pelo avesso e transformar a educação americana”.
Menos Petrarca, mais Samora MachelThe opening of the American mind, de Levine, foi uma resposta multiculturalista a The closing of the American mind: How higher education has failed democracy and impoverished the souls of today’s students, obra publicada dez anos antes pelo filósofo Allan Bloom, que denunciava a degradação da educação universitária americana, em resultado da promoção do relativismo e do nihilismo, do desprezo pelos grandes autores do cânone ocidental e do facto de os estudantes, aliados a professores extremistas, terem retirado ao corpo docente o poder de definir “os objectivos da universidade e o conteúdo daquilo que ensinavam” (ver Platão, Nietzsche e Mick Jagger: Entre guerras culturais e crises civilizacionais).
Por amarga ironia, 1987, o ano da publicação The closing of the American mind, assistiu também a um episódio-chave na decadência intelectual da universidade americana denunciada por Bloom e no descrédito do conceito de civilização ocidental. Na Universidade de Stanford, na Califórnia, os estudantes, descontentes com o que entendiam ser a falta de diversidade do programa da cadeira de “Cultura Ocidental”, que era obrigatória para os alunos do primeiro ano de todos os cursos, exigiram a sua reformulação, invocando em seu favor a pífia tese de Allardyce. A 15 de Janeiro de 1987, o descontentamento materializou-se numa manifestação com meio milhar de participantes e encabeçada pelo reverendo Jesse Jackson – célebre activista dos direitos civis e discípulo de Martin Luther King –, que protestava contra o eurocentrismo e o domínio do que hoje se designa nos meios woke como “cis-heteropatriarcado” no programa de “Cultura Ocidental” e exigindo a inclusão neste de autores de minorias étnicas e do sexo feminino. Enquanto exibiam cartazes onde podia ler-se “Marcus Garvey, Kwame Nkumah, Malcolm X, Martin Luther King, Samora Machel: Um legado de liderança progressista ignorada pelo [curriculum de] Cultura Ocidental!”, os estudantes entoaram repetidamente o cântico “Hey hey, ho ho, Western culture’s got to go!”.

Manifestação encabeçada por Jesse Jackson, Universidade de Stanford, 15.01.1987
As exigências dos estudantes de Stanford, que podem ser vistas como uma prefiguração das reivindicações wokistas no nosso tempo, acabaram por produzir os resultados pretendidos e em 1988 o senado da universidade aprovou, por maioria esmagadora, a reestruturação da cadeira contestada (que um articulista da época considerou ser “uma afronta […] às mulheres e aos membros de grupos minoritários”). A cadeira passou a designar-se “Culturas, Ideias e Valores” e a incluir uma representação apreciável de mulheres e de autores e ideias provenientes de culturas não-ocidentais. O novo programa entrou em vigor no ano lectivo de 1989-90 e, apesar das reacções negativas vindas dos sectores conservadores, acabou por impelir outras universidades americanas a, nos anos seguintes, empreenderem revisões dos seus curricula de humanidades numa direcção similar. A esta reorientação talvez não tenha sido estranha a revelação, saída dos censos de 1990, de que 25% dos cidadãos americanos se identificavam como “não-brancos” (i.e., afro-americanos, hispânicos, asiáticos, nativos americanos, etc.), quando, apenas dez anos antes, esta categoria representava 20% da população (nos censos de 2020, a proporção de não-brancos subira para 38% e inquéritos de 2023 sugerem que poderá já ter atingido 58%).

Distribuição da população dos EUA por idade e etnia, em 2020
Nas palavras de Stanley Kurtz, em The lost history of Western civilization, a “revolução” operada em Stanford “pôs em marcha um movimento multiculturalista que escorraçou as cadeiras de Civilização Ocidental da maioria das universidades americanas e definiu os termos das guerras culturais para as décadas seguintes”.
Olhando em 2015 para as exigências dos alunos de Stanford em 1987, e para as questões identitárias e civilizacionais que elas desencadearam, Andrew Hartman, um empenhado promotor do multiculturalismo, considerou que “a reacção conservadora à revisão do curriculum de Stanford foi exagerada. […] A ideia de que a cadeira de Civilização Ocidental representaria uma tradição de longa data era patentemente falsa […] A cadeira de Civilização Ocidental era uma invenção americana recente. Antes da I Guerra Mundial, os americanos tinham procurado distinguir-se dos europeus, uma ambição que os curricula de humanidades tendiam a reflectir. Quando os políticos americanos envolveram os EUA na guerra na Europa [em 1917] os responsáveis pela elaboração dos curricula americanos seguiram os seus passos e atrelaram o destino cultural da nação à Europa (in A war for the soul of America: a history of culture wars). Ideias similares foram expressas pelo historiador Lawrence W. Levine, em The opening of the American mind – “o curriculum de Civilização Ocidental, retratado pelos críticos conservadores da academia do nosso tempo como apolítico e extremamente antigo, não é nenhuma dessas coisas. Foi um fenómeno do século XX que teve origem numa iniciativa governamental em tempo de guerra e cujo período de aceitação durou menos de 50 anos” – e pela historiadora Lynn Hunt, que, em 2016, reiterou a ideia de que a “civilização ocidental foi inventada durante a I Guerra Mundial como forma de explicar aos soldados americanos por que iam lutar para a Europa” (em entrevista à revista Time, 19.07.2016). Comprova-se assim que o meio académico das humanidades se tornou tão lasso e moralmente corrupto que uma teoria desvairada pode nele desfrutar de aceitação generalizada apesar de ter vindo a ser desacreditada e provada como factualmente incorrecta ao longo de mais de três décadas.
A tese de Allardyce tem conhecido variantes, que, embora mantenham que o conceito de “civilização ocidental” foi inventado no início do século XX nos EUA, justificam a sua confecção, não com o intuito de galvanizar os americanos para a luta contra a Alemanha, mas para promover a assimilação das massas de migrantes vindos de todo o mundo que então afluíam aos EUA (ver capítulo “Uma manta de retalhos e paradoxos” em Ainda há americanos na América?) e para justificar a recém-descoberta vocação imperial dos EUA, que, em 1898, concluída a expansão territorial e a “pacificação” dos “povos originários” no continente americano, tinham anexado o arquipélago de Hawaii e, no rescaldo da Guerra Hispano-Americana de 1898, assumido o controlo das colónias espanholas de Cuba, Filipinas, Porto Rico e Guam.

“Dez mil milhas de ponta a ponta”: cartoon de 1898, comparando a extensão territorial dominada pelos EUA nesse ano com a extensão territorial do país em 1798
Estas teses provenientes da academia americana dizem-nos menos sobre a civilização ocidental do que sobre o autocentramento doentio dos EUA, país que se extasia na contemplação do seu próprio umbigo, em que apenas 3% dos livros publicados são traduções de línguas estrangeiras e que baptizou como “World Series” a série de jogos que coloca frente a frente os vencedores das duas ligas da Major League Baseball, a American League e a National League, de que fazem parte apenas equipas dos EUA e do Canadá (o eventual 51.º estado dos EUA). As disputas em torno destas teorias abstrusas e ridículas têm fornecido combustível para as “guerras culturais”, tão caras aos intelectuais, activistas e políticos americanos, mas não dão contributos válidos para a compreensão do mundo, uma vez que estão completamente desligadas da realidade.
A primeira menção registada da expressão “mundo ocidental” precede em mais de 300 anos a “data de nascimento” da civilização ocidental proposta por Allardyce: o seu autor foi o inglês William Warner, que a empregou na obra Albion’s England (1586), um longo poema épico, de tom patriótico, que narra a história de Inglaterra mediante um entrançado de factos históricos, lendas, episódios bíblicos e figuras da mitologia greco-romana e que se estende cronologicamente entre o patriarca Noé e o tempo do próprio autor (com alguma licença, pode dizer-se que Albion’s England está para a história de Inglaterra como Os Lusíadas estão para a história de Portugal).
Ao longo da Idade Média, a oposição Cristandade/Islão contribuíra para dar forma incipiente à identidade dos reinos europeus, ainda que, pontualmente, alguns deles se aliassem a reinos muçulmanos para combater reinos cristãos rivais (e os muçulmanos fizessem o mesmo). No Renascimento, a redescoberta pelos europeus do legado da Grécia e de Roma, reforçara o sentimento de uma cultura europeia partilhada e forjara o conceito de “educação humanista”. A expansão ultramarina das potências marítimas europeias, a partir do dealbar do século XVI, foi marcada pelo “contacto e convergência entre civilizações que se tinham desenvolvido até então em esferas distintas” (Quinn, pg. 445), um intercâmbio que poderia ter despertado os europeus para a ideia de que a humanidade seria una na sua caleidoscópica diversidade, mas, em vez disso, os levou a consolidar a consciência de pertença a uma mesma civilização, que não só era distinta das outras civilizações como lhes era superior – mesmo quando os europeus eram confrontados com a sofisticação, poderio e prosperidade das civilizações otomana, indiana e chinesa.
A distinção entre a civilização ocidental e as restantes acentuar-se-ia, a partir do final do século XVII, com o Iluminismo, que inculcou nas sociedades europeias o princípio de que a Razão é a principal fonte de autoridade e legitimidade, promoveu ideais de liberdade, progresso e tolerância e advogou a separação entre Estado e Igreja. O contraste entre a Europa e as restantes civilizações era agora flagrante, pelo menos aos olhos do pensadores europeus, alguns dos quais tentaram encontrar explicações para tais diferenças.

Os salões onde as elites se reuniam para debater livremente foram uma das marcas da Era das Luzes: Na imagem, “Leitura da tragédia O órfão da China, de Voltaire, no salão de Madame Geoffrin, em 1751”, quadro de 1812 por Anicet Charles Gabriel Lemmonier
Montesquieu (Charles Louis Secondat, barão de Montesquieu, 1689-1755), Um dos vultos mais proeminentes do iluminismo, redigiu, ao longo de 14 anos, um monumental tratado sobre política e direito, intitulado De l’esprit des lois (1748), repartido por 31 “livros” e estendendo-se, na edição original, por dois tomos com mais de 500 páginas cada, em que comparava os sistemas políticos e legais de várias regiões do mundo e apresentava teorias explicativas para as diferenças entre eles. Uma dessas teorias, que ficou conhecida como “teoria dos climas”, postula que “são as diferentes necessidades nos diferentes climas que moldaram as diferentes formas de vida; e foram essas diferentes formas de vida que determinaram os diferentes tipos de leis” (Livro XIV), sendo que, no entender de Montesquieu, os habitantes dos climas quentes seriam tendencialmente indolentes, enquanto os dos climas frios seriam mais empreendedores, inteligentes e intrépidos: “O calor pode ser de tal modo excessivo que o corpo fica completamente desprovido de energia. Este abatimento contagia o próprio espírito: nenhuma curiosidade, nenhum empreendimento nobre, nenhum sentimento generoso; as inclinações são todas passivas, a preguiça é a felicidade”. No entender de Montesquieu, a diferença de temperaturas engendraria predisposições morais contrastantes: “Os povos das regiões quentes são tímidos como os velhos; os das regiões frias são destemidos como os jovens […] Nos climas nórdicos encontramos povos com poucos vícios e abundantes virtudes, muita sinceridade e franqueza. Ao aproximarmo-nos dos países meridionais, dir-se-ia que nos afastamos da moralidade e as paixões acesas multiplicam os crimes” (Livro XIV).

Retrato de Montesquieu, numa medalha da autoria de Jacques-Antoine Dassier a partir de pintura de autor desconhecido
Apesar de atribuir influência preponderante ao clima na formação do carácter dos povos, Montesquieu entendia que este resultava também do concurso de outros factores físicos, como sejam a topografia (por exemplo, as vastas planuras da Ásia favoreceriam, de acordo com ele, a constituição de grandes impérios), e também de factores de ordem humana (por exemplo, as religiões e filosofias asiáticas favoreceriam a passividade).
Montesquieu contrapôs assim os sistemas políticos e os modos de vida da Europa e da Ásia: “Na Ásia […] os povos guerreiros, corajosos e activos vivem ao lado de povos efeminados, preguiçosos e tíbios. Na Europa, pelo contrário, as nações fortes confinam com nações fortes […] É esta a principal razão da fraqueza da Ásia e da força da Europa, da liberdade da Europa e da servidão da Ásia. […] Com efeito, na Ásia nunca ocorre que a liberdade aumente, enquanto na Europa ela aumenta ou diminui consoante as circunstâncias” (Livro XVII). Na Europa, “gerou-se um espírito de liberdade, que faz com que seja assaz difícil subjugar cada uma das suas partes e submetê-la a uma força estrangeira […]. Pelo contrário, na Ásia reina um espírito de servidão que nunca a abandonou, e, em todas as histórias destas regiões, não é possível encontrar um só dos traços que assinalam uma alma livre – nunca encontraremos outro heroísmo que não seja o da servidão” (Livro XVII).

Página de título da 1.ª edição de L’esprit des lois (1748)
Montesquieu associou o “despotismo oriental” à inércia (no despotismo, “é necessário que o temor aniquile toda a coragem e extinga a mais ínfima ambição”), à corrupção (o governo despótico “corrompe-se incessantemente, pois é corrupto por natureza”), e à ignorância (“a obediência estrita pressupõe a ignorância do que obedece”). Já o seu contemporâneo Jean-Jacques Rousseau, embora também visse os sistemas de governação orientais como inerentemente despóticos, tinha visão oposta dos efeitos desse despotismo na disposição dos respectivos povos. Naquela que é porventura a sua obra mais influente, Émile ou De l’éducation (1762), publicado 14 depois de L’esprit des lois, Rousseau, após afirmar (sem qualquer fundamentação objectiva) que os “turcos” eram mais humanos e hospitaleiros que os europeus, justificava-o por os primeiros viverem num regime despótico: “Uma vez que, sob a governação arbitrária, a importância e a abastança dos indivíduos são sempre precárias e vacilantes, eles não encaram o rebaixamento e a miséria como um estado que lhes é estranho, pois qualquer um deles pode ver-se amanhã na condição daquele que hoje auxilia”.

Página de título da 1.ª edição de Émile ou De l’éducation (1762)
As considerações de Montesquieu sobre a (suposta) superioridade moral dos europeus face aos outros povos do globo não se ficaram pelo plano etéreo das ideias e das abstracções; Montesquieu entendia que essa superioridade conferiria aos europeus prerrogativas especiais no “concerto das nações”: assim, embora condenasse a conquista militar e a escravatura, advogava que as potências europeias tinham legitimidade para se entregarem à “colonisation commerçante” – isto é, ao colonialismo e ao extractivismo.
Não foi, claro, pela defesa da exploração colonial que De l’esprit des lois foi recebido com severas críticas pelos sectores conservadores da sociedade europeia e que, em 1751, a Santa Sé o inclui no seu Index Librorum Prohibitorum (Émile ou De l’éducation teria igual sorte), mas por (alegadamente) pretender substituir a religião pela razão e promover ideias “liberais”. Naturalmente, a obra foi, pelas mesmas razões, favoravelmente acolhido pelos sectores progressistas. A sua popularidade suscitou várias edições piratas, algumas delas no mesmo ano em que foi publicado, e fez com que fosse rapidamente traduzido noutras línguas. De l’esprit des lois mereceu a aprovação de grandes pensadores do seu tempo (nomeadamente Voltaire e David Hume), exerceu forte influência sobre pensadores e governantes das décadas seguintes e as suas marcas estão presentes na Constituição dos EUA (1788) e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), o que leva a que muitos especialistas o elejam como a mais importante obra de ciência política do século XVIII. Não obstante, há que reconhecer que De l’esprit des lois enferma de falhas de rigor, erros de percepção e evidentes preconceitos, sobretudo no que se refere ao mundo extra-europeu. A “teoria dos climas”, que se baseia em informações parcelares ou duvidosas, generalizações abusivas, dicotomias simplistas e raciocínios ingénuos (aos olhos do conhecimento presente), suscitou reservas logo em 1748 e tornar-se-ia num alvo fácil para os críticos do livro.

A distribuição das raças humanas, segundo a 4.ª edição (1885-90) da Meyers Konversation-Lexikon, uma popular enciclopédia em língua alemã
De l’esprit des lois não foi a primeira ocasião em que Montesquieu explanou a “teoria dos climas”, que já aflorara noutra das suas grandes obras, as Lettres persanes (1721, Cartas persas). Na verdade, a ideia de que o clima poderá determinar a natureza dos povos e das instituições que os governam precede Montesquieu em muitos séculos, remontando à Grécia Clássica. No século IV a.C., Aristóteles defendeu, no Livro VII do tratado Política, que, na Europa, “os que habitam os climas frios são, usualmente, bem dotados de coragem, mas são deficientes em inteligência e engenho, assim sendo, desfrutam de alguma liberdade, mas, não possuindo organização política, são incapazes de governar outros povos. Os nativos da Ásia são inteligentes e inventivos, mas falta-lhes a coragem e vivem, portanto, num estado de submissão e escravatura. Mas a raça helénica, que se situa entre ambas, é também intermédia no carácter, combinando coragem com inteligência. Por isso é livre e é a mais bem governada de todas as nações e, se constituísse um Estado único, seria capaz de governar o mundo”.
A ideia seria retomada, entre outros, pelo arquitecto e engenheiro romano Vitrúvio (Vitruvius, c.80-c.15 a.C.), que, no tratado De architectura, teceu considerações sobre a relação entre o clima e o carácter do ser humano (e até o seu tom de voz): “os povos do sul possuem, em resultado do calor, uma inteligência aguda, pelo que são livres e lestos a urdir planos, enquanto os povos nórdicos estão envoltos numa atmosfera densa e são paralisados pela humidade do ar, pelo que o seu intelecto é indolente. Podemos constatar isto nas serpentes, cujos movimentos são vivos no tempo quente e no Inverno são entorpecidas pelo frio e quedam-se inactivas e imóveis. […] Porém, ainda que os povos meridionais possuam intelecto mais vivo e sejam infinitamente inventivos na elaboração de planos, no que toca à coragem pouco têm para mostrar, pois o espírito varonil é-lhes sugado pelo sol. Pelo contrário, os homens naturais de regiões frígidas, ainda que tenham maior predisposição para se envolverem em confrontos bélicos, com grande coragem e sem tibieza, são tão lerdos de raciocínio que se esgotarão em investidas insensatas e desajeitadas, para seu próprio prejuízo. Sendo este o arranjo natural do universo e tendo estes povos sido contemplados com temperaturas a que falta a devida moderação, o território verdadeiramente ideal, situado em posição intermédia […], é aquele ocupado pelo povo romano. Com efeito, os povos da Península Itálica são os mais perfeitamente constituídos, em termos de corpo, de acuidade mental e de coragem. […] A Itália, ficando entre o norte e o sul, é uma combinação do que se encontra de ambos os lados e a sua proeminência é segura e inquestionável: com a sua inteligência desfaz as corajosas investidas dos bárbaros [do Norte] e pela força do seu braço detém as maquinações dos meridionais. Foi o discernimento divino que instalou a cidade de Roma numa região temperada, de forma a obter o direito a comandar todo o mundo”.

Mapa-mundo da cor da pele, de acordo com a escala cromática definida pelo médico, antropólogo, arqueólogo e explorador austríaco Felix von Luschan (1854-1924)
O mais notável elemento comum entre estas associações entre clima e civilização não é a solidez e engenho da argumentação (que deixa imenso a desejar), mas o espírito chauvinista que as impregna: cada autor entende que é o clima do seu país que propicia as condições mais favoráveis para o florescimento da civilização e das virtudes – para Aristóteles, a Grécia, para Vitrúvio, Roma, e para Montesquieu, a Europa Ocidental.
Não se pense, todavia, que este enviesamento e presunção são exclusivos do Ocidente. O historiador Ibn Khaldun (1332-1406), um dos maiores eruditos do mundo islâmico, nascido em Tunes, no Norte de África, numa família árabe originária do al-Andalus, assumiu ponto de vista análogo no Muqaddimah (Prolegómenos), de 1377, o volume introdutório do Kitāb al-Ibar (Livro dos exemplos), um compêndio de história universal em sete volumes que Arnold Toynbee classificou como “o mais importante do seu género” e onde, além de uma história detalhada dos árabes, persas, berberes e outros povos do mundo islâmico, são desenvolvidas ideias pioneiras nos domínio da sociologia, demografia, antropologia, economia, ciência política e história cultural.

Busto de Ibn Khaldun na entrada da kasbah de Béjaïa (Bugia), na Argélia
Também Ibn Khaldun postulou a existência de uma íntima conexão entre o clima e geografia de uma região e as características físicas e intelectuais do povo que nela habita. Após estabelecer, arbitrariamente, que o hemisfério sul da Terra seria de tal modo inóspito que não permitiria aos seres humanos que aí vivessem qualquer desenvolvimento civilizacional, Ibn Khaldun dividiu o hemisfério norte em sete regiões climáticas, do equador para o polo, sendo as regiões 1 e 2 habitadas por “negros” e as regiões 6 e 7 por “eslavos”; entre elas, estavam as regiões 3 a 5, com climas menos extremos e compreendendo a Europa meridional, o Maghreb, a Síria, a Anatólia, o Iraque, a Índia e a China. De acordo com Ibn Khaldun, “os habitantes das zonas intermédias são mais temperados nos seus corpos, cores [de pele] e qualidades de carácter […] Tendem, em todas as suas atitudes e em todas as circunstâncias, a manterem-se afastados do mal e reconhecem as profecias, a propriedade, o Estado, as leis religiosas e as ciências”. Já os povos das regiões mais próximas do equador ou do polo “constroem as suas casas com argila e juncos, vestem-se com folhas ou peles de animais e as suas qualidades de carácter são próximas das das bestas ignaras. […] Tem mesmo sido relatado que a maioria dos negros que habitam na primeira zona vivem num isolamento selvagem, não se congregando e devorando-se mutuamente. […] A sua distância geográfica às regiões temperadas engendra neles uma disposição e um carácter similares aos dos animais e torna-os, pois, também distantes da humanidade. O mesmo se aplica à sua atitude perante a religião: desconhecem a profecia e não possuem leis religiosas”. Noutra passagem, afirma que “os negros são, genericamente, caracterizados pela volubilidade, pela excitabilidade e pela emotividade. Têm grande apetência pela dança […] e são, por todo o lado, apontados como estúpidos” – estas características resultam, segundo Ibn Khaldun, de “o calor dominar o seu temperamento e formação. […] Deixam-se facilmente arrebatar pela alegria e são mais extrovertidos”.

“Mercado de escravos no Cairo”, litografia da série “The Holy Land, Idumea, Arabia, Egypt, and Nubia” (1842-49), realizada por Louis Haghe a partir de aguarelas de David Roberts
São passagens instrutivas, sobretudo para os que, no nosso tempo, imputam aos europeus a invenção e teorização do racismo e a invocação de teorias racistas como justificação para a escravização dos africanos, como se o mundo islâmico também não perfilhasse visões racistas da humanidade e não estivesse, desde a sua génese, assente na escravização de “eslavos” e de “negros” (ver Escravatura: Culpa, ressentimento e histórias mal contadas, capítulo “No período da escravatura” em Música clássica: Uma história de branqueamento ou de mérito criativo? e capítulo “As revoltas de escravos (não são todas iguais)” em O que o mundo moderno deve à exploração de África e dos africanos).
Próximo artigo da série: Civilização ocidental: A Sociedade Internacional para a Supressão da Selvajaria
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