José Fragata. ‘Não sei como se pode ganhar 50 mil euros num sábado’

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José Fragata. ‘Não sei como se pode ganhar 50 mil euros num sábado’

José Fragata. ‘Não sei como se pode ganhar 50 mil euros num sábado’

José Fragata lançou ontem o livro Histórias na vida de um cirurgião, e o Nascer do SOL aproveitou para falar com o professor catedrático que dirigiu várias equipas do Hospital Santa Marta durante vários anos, tendo-se defrontado com a problemática do SIGIC. Aqui fica a parte da entrevista relacionada com a atualidade.

A propósito deste chamado escândalo das operações aos fins de semana escreveu um artigo no Observador crítico, mas com um ‘mas’…O programa do SIGIC nasceu em 2004, portanto, há 21 anos. Porque nasceu? Porque já na altura o SNS não dava resposta à lista de espera. O nosso SNS é muito bom quando lá chegamos, mas para chegar lá nem sempre é fácil. Isso traduz-se em listas de espera inaceitáveis. Por isso, em 2017, o Estado definiu tempos mínimos de resposta garantidos. Isto é, uma pessoa não pode estar à espera mais do que X tempo, então o hospital tem que resolver o assunto de qualquer maneira. A produção adicional foi algo que teve vantagens, e vou enumerar algumas. Primeiro, permitiu operar os doentes. Em segundo lugar, permitiu que os médicos ganhassem mais, e era bem pago, já que os honorários médicos do SNS estão muito abaixo da OCDE, os médicos são mal pagos no salário base. Portanto, o SIGIC melhorou muito o salário, porque é como trabalhar 20 € à hora até as 15h00 e 100 € à hora ou 200 da parte da tarde. Mas o próprio hospital também recebia cerca de 60% ou 50 do volume pago por cada doente SIGIC. Portanto, o hospital também era remunerado. Ganhava o hospital, ganhavam os profissionais e ganhavam os doentes. Quem é que perdia? Nós, os contribuintes. Porquê? Porque seria provavelmente muito mais barato que não tivesse que haver um programa destes e que as condições de pessoal e de instalações locais permitissem que o sistema que se diz universal fizesse a sua função.

Como funcionava em Santa Marta?Em Santa Marta, enquanto fui diretor de serviço, durante 16 anos – eu nunca concordei com o SIGIC, mas acatava como lei – e mantive um programa de SIGIC porque tinha três salas de operações, mas só duas é que tinham pessoal. Portanto, usava o pessoal de folga, fora de horas, para rentabilizar, para mim aumentava-me a produção mais 20 ou 25%, o pessoal ganhava, o hospital cobrava, todos felizes. Quando Luís Montenegro tomou posse, a Saúde estava numa situação calamitosa. Não está bem agora, mas estava numa situação calamitosa. Esse Governo criou um programa de recuperação de listas de espera. Virou-se primeiro para as oncológicas, porque as pessoas estavam a perder a janela de se tratarem, como aliás já tinha acontecido no covid. E esse programa funcionou bem, funcionou com alguns abusos, mas funcionou bem, porque a lista foi desbastada, mas já está a crescer outra vez. Todas as medidas que nós fazemos de recuperação de emergência não são de fundo, são pensos rápidos. Quando acabam, volta a crescer. É como a tensão arterial, se eu não tomar os comprimidos, volta a subir.

Mas quando é que as coisas descambaram?De há três anos para cá. E disparou, como o Observador disse, 77%. E cresceu mais do que o crescimento da atividade principal. O SIGIC deve ser uma atividade residual, e não a atividade principal, porque é muito mais cara. Atenção que o próprio Governo estimulou isso, e os media estimularam isso, e a exigência da opinião pública estimulou isso. Era preciso acabar com as listas de espera. Isso teve mais efeito na área oncológica, do que nas chamadas listas convencionais. Como a capacidade do Sistema Nacional de Saúde não aumentou muito, porque não tem médicos, e as instalações levam muito tempo a cumprir, só podia ter crescido nas áreas do SIGIC. Perceba que a despesa em Saúde está quase em 18 biliões, com a despesa privada a subir mais do que a despesa pública. Portugal, neste momento, gasta cerca de 30 biliões com Saúde. Mas as contas só se veem no final do ano. Mas o que é certo é que em dez anos a despesa pública no SNS passou de nove para 18 biliões. Hoje, um hospital como Santa Maria terá uma despesa anual de 1 bilião de euros e o São José a mesma coisa. Há uns anos eram para aí 400 ou 500.000. Eu lembro-me do Central ter um orçamento anual de 500 milhões. O que falhou? Quando o hospital não consegue, no programa convencional, tratar os doentes, para cumprir os tempos médios de resposta garantida, tem três hipóteses: ou faz produção adicional, que é o mais apetecível, porque o hospital também recebe, ou dá um cheque de cirurgia e paga no privado, ou faz uma convenção, que é uma coisa que demora mais tempo e que é vista sempre como esquisita.

O que é isso da convenção?Convenciona com o hospital privado X que manda-lhe os doentes para operar e paga.

Isso não é a mesma coisa que o cheque?O cheque é para aquele caso, a convenção é um pacote. Portanto, o SIGIC era a solução legislada mais fácil. Então o que correu mal? Temos de um lado a pressão, temos do outro lado os interesses. Se eu tiver um carro que dê 250 quilómetros à hora, isso não é mau, mas ir para a Marginal a 250 quilómetros à hora, é mau. Portanto, a ferramenta do SIGIC não é grande coisa porque economicamente não é muito viável. Mas se for controlada, aceita-se porque o SNS não responde. O pior é quanto saiu de controlo. Quando eu era diretor de serviço, os leitores vão ter dificuldade em perceber isto, mas vou tentar. O SIGIC tem preços vários, e o SIGIC é uma atividade voluntária no serviço. Só faz quem quer. Se eu escalar para SIGIC casos que são mais mal pagos, as pessoas não se inscrevem e eu, como diretor de serviço, não os posso obrigar. Portanto, já aqui há uma seleção natural de casos.

E os casos mais mal pagos são menos apetecíveis para os médicos.Mas os casos mais mal pagos são doentes, estão na lista, e não podem ser prejudicados por isso. Há várias modelos que eu utilizei, alguns criaram-me grandes inimizades no serviço, porque nunca aceitei que um doente fosse prejudicado por uma questão de pagamento. Ainda para mais no SNS.

Mas continuando o raciocínio, há uns que ninguém quer porque são mal remunerados.Entendem que não lhes vale a pena.

Mas estamos a falar de que tipo de cirurgias?A atividade de cirurgia coronária paga menos que a cirurgia valvular. Logo, como as pessoas se inscrevem voluntariamente, podem não estar interessadas na cirurgia coronária. O que isso implica? Implica do diretor do serviço, uma atividade permanente censora sob a administração da lista do SIGIC, para não prejudicar a lista convencional e para não prejudicar os doentes. Depois há o aspecto da codificação, como é que os casos são classificados e pode haver engenharia de codificação.

Como assim?Se eu além da cirurgia coronária colocar mais isto e colocar mais aquilo, posso fabricar um código maior.

Mas isso é o cirurgião que faz depois da operação?O cirurgião não deve fazer isso.

Mas pode fazer?Se for simultaneamente o codificador.

Não é sempre o cirurgião que é o codificador?Não necessariamente, porque a codificação é feita normalmente por pessoas extras que olham para a complexidade do doente e para o que foi feito. Lá está, aí está em conflito potencial de interesse. Se eu como cirurgião que vou receber face à codificação do que vou fazer, qual é a minha tendência?

É pôr mais…São tendências humanas. A barreira entre a honestidade e a desonestidade é muito marcada, mas há uma zona de limbo, para administração de interesses. É preciso perceber isso. Os sistemas fortemente regulados favorecem a honestidade. Se a pessoas tem regras, têm que ser honesta à força.

Qual é a solução para não haver médicos a ganharem 40 mil euros por trabalharem a um sábado?Deixe-me concluir com o que falhou. Por um lado, uma grande pressão, por outro lado, uma ferramenta legal, interessava a todos. Houve falta de controlo local das direções de serviço e da chamada gestão intermédia que os administradores locais, e falhou, provavelmente, a montante, as chamados sensibilidades às luzes vermelhas, ou não repararam ou não ligaram, porque obviamente. Vou dar-lhe um exemplo: uma cirurgia coronária era paga por 750 € para o cirurgião, a cirurgia demora quatro horas. Veja num sábado quantas cirurgias tinham que fazer para chegar a 50 mil euros. Estamos a falar de cirurgias da pele, que é uma coisa diferente. Portanto, é óbvio que alguma luz vermelha devia ter acendido.

Era 750 euros à hora?Não, por operação. Em quatro horas ganhava 750 euros. O SIGIC era pago mais ou menos ao nível da tabela da ADSE. Os 750 euros não era o volume todo. Depois o primeiro ajudante ganhava 30%, o anestesista ganhava 20 ou 30%. Resumindo, o hospital ficava com 40 ou 50%, e a equipa ficava com o restante. O que acho é que é um sistema caro.

Então mas como é que pode dar 50 mil euros num dia?Não vou comentar isso, até porque há inquéritos a correr.

Desculpe, se diz que a cirurgia torácica era paga a 750 euros, e levava quatro horas, como é possível alguém chegar aos 50 mil euros num só dia?Não sei como é que se geram 50 mil euros num fim de semana.

Qual é a solução para estes problemas?A reforma do SNS, que integrasse público, privado e social, sob orientação do eixo estatal. O Estado tem por obrigação prover à saúde na Constituição e não prestar saúde. Não quer dizer que não possa prestá-la, mas tem obrigação de prover e regular. Mais uma vez não regulou bem aqui. Mas se o Estado quiser continuar nisto, tem que exigir um maior controlo. Estes sistemas todos a que temos assistido nos últimos dois três anos, são sistemas que chamo de penso rápido. Eu espero que agora, com uma maioria mais consolidada, as pessoas consigam reformar alguma coisa, porque estes sistemas, é como os tarefeiros na saúde. A despesa com pessoal subiu, não é sustentável. E o pior é que quanto mais dinheiro se põe, o dinheiro que se põe é para ir safando listas de espera. Quando não há médicos, e obviamente o governo não se pode dar ao luxo de ter unidades a ser noticiadas como não estando abertas, a solução é tarefeiros. Os tarefeiros são pessoas fora de equipa. Trabalham um fim de semana aqui e depois outro ali. E depois quando olha para a geração de médicos novos, e lhes começam a oferecer carreiras, eles não querem, porque ganham mais à tarefa. O sistema está perverso.

Jornal Sol

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