A Idade do Meio
O que leva uma criança a ler histórias de cavalaria e a disfarçar-se de cavaleiro? Que voz — ancestral, ardente, inelutável — grita dentro do peito ao ver D. Afonso Henriques? Eu digo-vos: é a espada. A espada, senhores! Essa melancolia vertical que é também uma cruz. Há quem diga com tédio pós-moderno: — “E então os futebolistas? Os miúdos adoram futebolistas.” Pois adoram. O que só reforça o argumento. Os futebolistas são cavaleiros dos tempos modernos. Heróis que dão a vida ao serviço de um escudo. Não convencido acrescentar-se-á: “Sim, mas isso é culpa dos pais que influenciam os filhos.”
Bem. Que há pais que alimentam certas fantasias como quem dá de comer a um monstro, é verdade. Sei do que falo. Sou um deles. Mas — e estou muito convencido do que vou dizer a seguir — não haverá um pai ou uma mãe capaz de, no seu perfeito juízo, contrariar o enamoramento de um filho pelo Príncipe Valente, pelas fantasias medievais do Tolkien, por Artur ou pelo nosso primeiro, o nosso D. Afonso Henriques.
Acham que estou a torcer argumentos? Expliquem-me então o êxtase colectivo das Feiras Medievais. Essa alucinação trimestral que se alastra de Norte a Sul. Homens com empréstimos e ácido úrico vestidos de escudeiros. Mulheres com filhos e joanetes a fazer de estalajadeiras. É bizarro. É grotesco. É maravilhoso. E tem espadas! Toda uma pequena economia se organiza à volta daqueles eventos. Até escolas de esgrima histórica existem. É um regresso à infância. À infância da civilização.
Há muito que se impõe uma higiene histórica. Uma limpeza mental que o nosso século XXI continua a adiar.
Tenho-me entregado a um passatempo que é também um vício triste. Recolher recortes, frases, insultos. Gente que usa “medieval” como sinónimo de monstro. Como se dissesse obsoleto. Como sinónimo de buraco. A colecção é vasta. Seria aborrecido enumerar. Mas cito dois exemplos muito recentes que me feriram com particular prazer.
Há dois ou três dias, o Henrique Monteiro, que, apesar de maçon, não é má pessoa, escreveu no Expresso que o regime iraniano, instaurado por Khomeini, era “obscurantista, medieval, sem perdão ou face humana”. Como se o perdão tivesse sido inventado por Rousseau. Como se o amor cristão só tivesse nascido em 1789.
Depois, o Francisco Mendes da Silva. Um amigo. Um homem bondoso. Na sua crónica do Público de 23 de Maio, disse qualquer coisa sobre as ideias do Chega e o sistema penal. Que eram — isso mesmo — “medievais”. Não eram brutais, nem cruéis, nem desajustadas. Eram “medievais”. Que esse tempo seja invocado tantas vezes como metáfora moral por gente que nunca leu uma linha de São Tomás nem sabe distinguir uma catedral gótica de um castelo da Disney já estamos nós habituados. Mas de gente sensata e prudente? Gente que leu Chesterton?
Repare-se na ironia: a própria palavra médio significa, literalmente, aquilo que está entre os extremos. Nem muito, nem pouco. Nem grande, nem pequeno. Nem largo, nem estreito. Nem desumano, nem sentimental. A justa medida. O ponto onde tudo se encontra. O ponto onde se pode respirar. Por isso vos digo: nesse sentido o Henrique e o Francisco são, à sua maneira, medievais. O que é honroso. E triste.
Já vos disse que tenho horror a lugares-comuns. Em todo o caso, repito e acrescento: o mais ordinário dos lugares-comuns modernos é chamar “medieval” a tudo o que se quer odiar sem ter de puxar pela cabeça. O Chega propõe o restabelecimento da guilhotina — medieval. O Irão apedreja mulheres — medieval. Um pai esbofeteia o filho — medieval. Um sacerdote menciona o Inferno — medieval, medieval. É o bingo da cretinice, alimentado por uma única coisa: metáforas preguiçosas.
A Idade Média não foi um tempo de ignorância, mas de uma curiosidade ordenada. Não foi um tempo de medo, mas de coragem. O homem medieval olhava para as estrelas com assombro, não com vontade de as colonizar. E via no céu não apenas corpos celestes, mas sinais de harmonia e sentido.
A Idade Média foi o berço de muitas das ideias que hoje temos por civilizadas. As primeiras universidades, por exemplo, são instituições medievais. O conceito de dignidade da pessoa humana, que se cospe a torto e a direito como se fosse uma pastilha elástica da ONU, foi laboriosamente construído pela Escola de Salamanca, com raízes fundas em Tomás de Aquino. Mas essas raízes não nascem da razão moderna, nascem da fé medieval. Da convicção — terrível, gloriosa — de que o homem é imagem de Deus. É desta certeza que brotam os chamados “direitos humanos”. Já a palavra “obscurantismo”, essa sim, pertence ao léxico do século XVIII, quando os iluministas precisaram de inventar um passado sombrio para se apresentarem como portadores da luz.
Os modernos pensam que o mal foi inventado pela extrema-direita. Que a brutalidade é coisa de bárbaros orientais. Que o pecado é uma questão de contexto. Na Idade Média, meus amigos, o pecado tinha nome e morada. E, graças a Deus, tinha castigo.
Deixem-me dizer uma coisa com a boca cheia de fel: Medieval é a ignorância. Medieval é o desprezo. Medieval é a necessidade de cronologia para justificar a covardia. A Idade Média não foi um tempo de trevas. Foi um tempo de sombras, esse fenómeno nobre que acontece quando há algo sólido diante da luz. Como uma árvore. Como uma catedral.
Hoje vive-se de óculos escuros, debaixo de um Sol assassino. Hoje prefere-se insultar o passado. Rir dos mortos em vez de resistir aos vivos. Mas eu digo-vos isto: toda a mentira há-de arder. E todo o preconceito histórico tem um destino. O Inferno. Como Dante o descreveu, algures no século XIV.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
Visao