A 'tempestade perfeita': Relatório alerta que seca global remodelará a vida no planeta entre 2023 e 2025

O mundo está enfrentando uma das piores crises de seca da história recente. É o que aponta o relatório "Pontos Críticos de Seca ao Redor do Mundo 2023-2025", publicado pela Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação (UNCCD) e pelo Centro Nacional de Mitigação da Seca (NDMC) dos EUA. O documento, apoiado pela Parceria Internacional para a Resiliência à Seca (IDRA), documenta com dados chocantes a extensão do fenômeno em todos os continentes.
“Esta não é apenas uma estação seca”, afirma o Dr. Mark Svoboda, um dos autores e diretor fundador do NDMC. “É uma catástrofe global em câmera lenta, a pior que já vi.”
América Latina: Rios secos, vida selvagem morta e comércio paralisado A Amazônia e o Canal do Panamá tornaram-se símbolos dessa emergência na região. Segundo o documento, os impactos na bacia amazônica — que inclui Colômbia, Brasil e Venezuela — foram diversos e significativos. Relataram "restrições de transporte, escassez de água potável, mortes de fauna aquática e incêndios florestais". Secas prolongadas reduziram drasticamente os níveis de rios e córregos, afetando a conectividade de comunidades rurais e ribeirinhas.
O relatório observa que essas condições extremas também deterioraram a qualidade da água, criando riscos à saúde. "A profundidade superficial dos corpos d'água obrigou muitas comunidades a recorrer a fontes contaminadas", um fenômeno particularmente grave em regiões rurais da Colômbia com infraestrutura de saneamento limitada.

Seca no Rio Amazonas. Foto: UNGRD
Em relação à biodiversidade, o relatório indica que "as mortes de espécies aquáticas devido ao baixo oxigênio e às altas temperaturas foram generalizadas", com profundas implicações ecológicas para ecossistemas frágeis como os da Amazônia colombiana.
Enquanto isso, o Canal do Panamá teve seus trânsitos diários reduzidos de 38 para 24 navios entre outubro de 2023 e janeiro de 2024 devido à falta de água, impactando severamente o comércio global. "O impacto foi sentido dos Estados Unidos para a Europa: as exportações de soja foram atrasadas e os supermercados britânicos relataram escassez e aumento nos preços de frutas e vegetais", afirma o relatório.

Embarcações paradas no mar, aguardando passagem pelo Canal do Panamá. Foto: Getty Images
A região mais afetada foi a África. Só na parte oriental do continente, 23 milhões de pessoas enfrentam fome aguda. Na Somália, 43.000 pessoas morreram de fome relacionada à seca em 2022. No início de 2025, mais 4,4 milhões — um quarto da população — estarão em estado crítico.
No Zimbábue, 70% da produção de milho do país foi perdida em 2024, e o preço do grão dobrou. Nove mil cabeças de gado morreram de sede e fome. A situação na Zâmbia não foi melhor: o nível do rio Zambeze caiu para 20% da sua média histórica, paralisando a barragem de Kariba, sua principal fonte de energia. O resultado: apagões de até 21 horas por dia, hospitais fechados e fábricas ociosas.

Migração forçada de populações na Somália. Foto: MISSÃO DA UNIÃO AFRICANA NA SOMÁLIA
O relatório destaca Espanha, Marrocos e Turquia como "canários na mina" para o resto do mundo industrializado. Na Espanha, a produção de azeite caiu 50% e seu preço dobrou. Marrocos viu seu rebanho de ovelhas reduzido em 38% em comparação com 2016, o que levou até mesmo a um apelo real para suspender os sacrifícios do Eid al-Adha. A Turquia, por sua vez, registrou mais de 1.600 sumidouros causados pelo esgotamento das águas subterrâneas.
Ásia: Secas são sentidas nos mercados globais Na Ásia, a produção de arroz, café e açúcar foi severamente afetada. A seca na Tailândia e na Índia em 2023 e 2024 elevou o preço do açúcar nos EUA em 8,9%, demonstrando como eventos climáticos regionais já estão desencadeando impactos econômicos globais.
“Uma tempestade perfeita” Segundo o relatório, os efeitos devastadores foram amplificados pelo fenômeno El Niño, que, combinado com as mudanças climáticas entre 2023 e 2024, intensificou a seca em áreas agrícolas e ecológicas cruciais. "Foi uma tempestade perfeita", observa a pesquisadora Kelly Helm Smith. "O El Niño jogou gasolina na fogueira das mudanças climáticas."
Os custos econômicos dessas secas, alerta o estudo, já dobraram desde 2000 e podem aumentar de 35% a 110% até 2035. "Os efeitos dominó podem transformar secas regionais em crises econômicas globais", observa o coautor Cody Knutson.

As altas temperaturas e a baixa pluviosidade foram reflexo do El Niño. Foto: Cortesia da Prefeitura de Barranquilla.
Um dos focos do relatório é o impacto desproporcional sobre mulheres, meninas, idosos e populações rurais. Na Etiópia, os casamentos infantis mais que dobraram durante a seca. No Zimbábue, milhares de meninas abandonaram a escola devido à fome ou à falta de higiene. Na Amazônia, comunidades indígenas ficaram isoladas devido à inundação de rios, com mulheres até mesmo dando à luz sem conseguir chegar aos centros de saúde.
“Vimos mecanismos desesperados de enfrentamento: meninas retiradas da escola para se casarem, famílias escavando leitos de rios secos para obter água contaminada e hospitais às escuras. Esses são sinais de uma crise grave”, disse a autora principal, Paula Guastello.
Lições e chamadas urgentes O relatório conclui com um apelo claro ao investimento na prevenção. Propõe o fortalecimento dos sistemas de alerta precoce, a restauração de bacias hidrográficas, a promoção de culturas indígenas, a garantia de infraestrutura resiliente e a priorização da igualdade de gênero na adaptação.
“A seca não é mais apenas um fenômeno meteorológico. É uma emergência social, econômica e ambiental”, resume o Dr. Svoboda. E ele faz um alerta: “A questão não é se isso acontecerá novamente, mas se estaremos mais bem preparados da próxima vez.”
Jornalista de Meio Ambiente e Saúde
eltiempo