Portugal sem serviços mínimos

1 A democracia pressupõe a existência de estabilidade política, condição necessária para que qualquer governo, seja qual for a orientação política, possa implementar o seu programa e ser avaliado ao final de quatro anos, de modo a ser reconduzido ou substituído pela oposição. Não é um ano de governo que mostra a capacidade ou inépcia de um governo. Portugal precisa de estabilidade assim como de reformas duradoras e sustentáveis no tempo. Quanto a estas tão desnecessárias como evitáveis eleições há apenas uma certeza, a de que a instabilidade política no país vai aumentar. Esta ideia que as eleições antecipadas resolvem problemas, ou que o povo é sábio, não passam de ideias românticas, boas para deleite de alguns, mas completamente falsas. É interessante notar a contradição entre o que dizem os líderes dos partidos que poderiam assegurar essa estabilidade e a realidade. Pedro Nuno Santos diz que se ganhar, o seu governo será de diálogo e de estabilidade. Estabilidade como, com uma assembleia da república com uma maioria de direita que a qualquer momento poderá derrubar esse governo? Contudo, nada diz sobre o que fará se a AD ganhar as eleições, à exceção de que irá manter a comissão parlamentar de inquérito ao primeiro-ministro. Luís Montenegro também insiste muito em estabilidade, para permitir que continue a governar. Mas também nada diz sobre possíveis cenários, caso seja o PS a ganhar as eleições. Em resumo, nada sabemos sobre o que os maiores partidos farão caso não ganhem as eleições. E do Chega, dada a volatilidade tática do seu líder, nada podemos esperar sobre estabilidade. Não admira que o Presidente da República tenha colocado agora a fasquia abaixo dos mínimos. Só dará posse a um governo se tiver a certeza que este seja viabilizado pelo parlamento. Ou seja, não quererá repetir a proeza de Cavaco Silva ao indigitar Pedro Passos Coelho para um governo que durou apenas 27 dias. Aqui está onde chegámos. Não sabemos sequer quando iremos ter governo, muito menos se o primeiro ou o segundo orçamento passarão. Estamos mesmo abaixo dos serviços mínimos democráticos.
2 Infelizmente não é o único caso onde estamos sem serviços mínimos. Sou um lisboeta suburbanizado que, há mais de trinta anos, usa regularmente para se deslocar para o trabalho, a par de dezenas de milhares de portugueses, os comboios da linha de Cascais. Vale a pena deixar aqui um breve testemunho para os mais novos e para quem não utiliza este meio de transporte, mas tem o poder de decisão e decidiu que não haveria necessidade de serviços mínimos, durante a greve da CP da semana passada. Há trinta anos, os comboios eram pontuais e havia comboios rápidos que paravam nas três estações de Lisboa (Alcântara, Santos e Cais do Sodré). Já nesse tempo havia greves, mas a CP disponibilizava transportes alternativos (autocarros). Três décadas volvidas, os comboios não são pontuais, suprimiu-se a paragem em Santos para os comboios rápidos, a CP não fornece transporte alternativo quando há greves, e não responde a reclamações. Mais grave, a CP não dá informação aos utentes que estão na plataforma 10, 20, 30 minutos à espera de um comboio que não aparece. Isto é serviço público? Não, não é. Está na altura de pensar na concessão desta linha a um privado, com adequada regulação de concessão. A cereja no topo do bolo foi a inexistência de serviços mínimos em três dias de greve consecutivos, o que me parece inédito. Já aqui tive ocasião de argumentar, face a uma outra greve de um dia sem serviços mínimos, que o tribunal arbitral (TA) ignorou os direitos dos cidadãos e utentes, nomeadamente o direito ao trabalho e à mobilidade. Nesta greve a CP teve um comportamento errático. Primeiro, o seu representante no TA votou pela inexistência de serviços mínimos, mais tarde a CP fez um recurso da decisão do TA de inexistência de serviços mínimos, junto do Tribunal da Relação. Jorge Bacelar Gouveia, que presidiu a este Tribunal, e face à justa indignação popular quanto a esta situação, tentou salvar a face da decisão com um comunicado justificativo que não convence. Primeiro, argumentou que não é uma greve única, mas várias greves. Será que isso é relevante para os utentes dos comboios? Depois que o tribunal solicitou à CP que assegurasse 15% de serviços mínimos. Como a CP respondesse que não poderia garantir a segurança nas estações e dentro dos comboios, lembrando certamente tumultos recentes, o tribunal em vez de concluir da necessidade de aumentar essa percentagem, fez o contrário, anulando os serviços mínimos. Já agora porquê 15% e não 30%? Quando revisitarem a lei da greve não convém esquecer o decreto-lei da arbitragem.
3 Um caso, bem mais dramático, em que Portugal tem mostrado, a par da maioria dos países europeus, estar bem abaixo dos mínimos, é na posição, ou quase ausência dela, do governo português face ao genocídio e limpeza étnica que o governo de Israel está a implementar na faixa de Gaza e na Cisjordânia. O que se pede ao governo e ao Ministro dos Negócios Estrangeiros (MNE) não são apenas palavras, ou inconsequentes visitas diplomáticas à região, mas ações para impedir Netanyahu de destruir a possibilidade de existência plena do Estado da Palestina. Nem me refiro, apenas, ao reconhecimento do Estado da Palestina por Portugal, como já foi feito por Espanha, Irlanda e Noruega. Portugal poderia ter tido a iniciativa, que agora teve o MNE holandês, de propor a suspensão do acordo comercial entre a União Europeia e Israel. Paulo Rangel também não se juntou aos MNE de seis países europeus que condenaram veementemente as ações e intenções de Israel de ocupar militarmente a faixa de Gaza. Amanhã começa o festival da Eurovisão. A estação pública irlandesa suscitou junto da organização (União Europeia de Radiodifusão) que se discutisse a presença de Israel. Músicos e letristas, entre o quais Salvador Sobral e Fernando Tordo, solicitaram em carta que Israel fosse impedido de participar no festival, à semelhança do que acontece com a Rússia. Isto teria tido grande impacto mediático no mundo. Portugal ausente. Nada feito. A israelita Yuval Raphael cantará numa cantiga romântica “darkness will fade, all the pain will go by, but you will stay, the love of my life” enquanto continuam a morrer milhares de mulheres e crianças palestinianas e se nega a ajuda humanitária e a liberdade a um povo que está cada vez mais na escuridão.
observador