O ataque ao mérito (2)

No seu manual de introdução à filosofia política, Justiça: fazemos o que devemos?, Michael Sandel conta-nos sobre o inquérito não-científico que costuma realizar todos os anos em Harvard, quando diz aos seus alunos:
“os psicólogos afirmam que a ordem de nascimento tem influência no esforço e no empenho – tal como o esforço que os alunos associam à entrada em Harvard. O primeiro filho tem, alegadamente, uma ética de trabalho mais forte, ganha mais dinheiro e obtém mais sucesso em termos convencionais que os irmãos mais novos. Estes estudos são controversos e não sei se as suas conclusões são verdadeiras. Mas, por brincadeira, pergunto aos meus alunos quantos deles nasceram primeiro. Entre 75 e 80 por cento levantam a mão. O resultado foi o mesmo sempre que fiz o inquérito.”
Fazendo jus à sua inclinação republicana, os dilemas com que Michael Sandel enriquece os seus livros permitem muitas aulas de discussão de ideias e este caso cumpre especialmente bem esse propósito.
Por um lado, é um tipo de experimentação que se está a tornar obsoleto: com a epidemia de filhos únicos, o filho mais velho será certamente aquele que terá mais sucesso – afinal, é o único filho. Mas será verdade que os filhos mais velhos são mais trabalhadores? E se isso parecer verdade à nossa volta, será porque o nascimento do filho seguinte condena o filho mais velho à angústia permanente de reconquistar a atenção dos pais? Ou serão mais esforçados porque foram mais estimulados e receberam mais atenção parental durante o tempo em que eram o único filho? Serão os filhos seguintes, nessa medida, mais “desenrascados”?
Por outro lado, temos na cultura norte-americana uma associação muito forte entre esforço e sucesso profissional: trabalhar mais significa, por regra, ser mais bem-sucedido em termos profissionais e obter, com isso, um maior rendimento. Mas, em países como o nosso, será possível associar “trabalhar mais” a “salário maior”? (Max Weber pode ser útil aqui.) E quem escolhe “trabalhar muito” na área da filosofia ou da ciência política, poderá ter a expectativa de ser “bem-sucedido” em termos materiais? Ou será igualmente sinal de inteligência saber escolher a área a que nos dedicamos?
2 Uma questão de lotariaNa verdade, o que Michael Sandel pretende com esta experiência é clarificar o argumento do filósofo político norte-americano John Rawls, que, na sua Teoria da Justiça, defende uma justiça redistributiva de base não-meritocrática, uma vez que os fatores que determinam o nosso sucesso (material) são uma questão de lotaria, social e natural.
O que quer dizer Rawls com esta ideia de lotaria? O filósofo norte-americano pretende chamar a atenção para o facto de as circunstâncias que rodeiam o nosso nascimento não serem responsabilidade nossa, mas serem resultado de mera sorte: não escolhemos nascer numa família com recursos materiais ou com pais capazes de estimular intelectualmente os seus filhos, tal como não escolhemos nascer saudáveis, inteligentes ou como filhos mais velhos. É uma questão de lotaria social e natural, o que significa que as vantagens que retiramos dessas condições de sorte não podem ser vistas como resultado de um esforço da nossa parte – isto é, não são resultado do nosso mérito.
Ora, não sendo as vantagens (materiais) responsabilidade nossa, então não nos deveríamos agarrar à ideia de que merecemos essas vantagens e de que as políticas redistributivas seriam, assim, injustas. A tributação que visa a redistribuição pelos mais desfavorecidos não deveria ser vista como um roubo, mas como uma forma de os sortudos reconhecerem a sua obrigação de devolver à comunidade, nomeadamente àqueles que tiveram azar social ou natural.
No seu livro de 2006, o psicólogo Jonathan Haidt acrescenta uma outra dimensão a esta conversa, recordando a polémica em torno do uso do Prozac (ou de outros medicamentos da mesma classe), por se tratar de um químico que permite “atalhar” para obter resultados mais rápidos do que, por exemplo, a meditação ou a terapia cognitiva:
“Não há trabalhos de casa, nem novas aptidões difíceis de adquirir, nem uma consulta semanal. Se acredita na ética protestante e está convencido de que o ganho vem do trabalho, é possível que se sinta perturbado pelo Prozac.”
Mas, acrescenta Haidt:
“É fácil para aqueles que tiveram sorte na lotaria cortical pregarem acerca da importância do trabalho árduo e do caráter antinatural dos atalhos químicos. Contudo, para aqueles que, sem qualquer culpa sua, acabaram na metade negativa do espectro de estilos afetivos, o Prozac é uma maneira de compensar a injustiça da lotaria cortical.” (itálico meu)
Sem surpresa, os meus alunos costumam ser particularmente sensíveis ao argumento de Haidt: afinal, tiveram o azar de nascer num tempo que, por diversas e disputáveis razões, lhes deu um campo bastante desnivelado na distribuição da sorte cortical.
3 O mérito democráticoAs últimas décadas do século XX foram muito marcadas por este pensamento rawlsiano, favorável a políticas sociais que compensem as diferentes sortes da lotaria do nascimento. Partindo de uma constatação natural e observável – as pessoas não escolhem as suas condições sociais e naturais e têm, muitas vezes, azar nessa lotaria –, foi com alguma facilidade que se criaram consensos políticos relativamente amplos, pelo menos na Europa, em torno dessas políticas sociais – ajudadas, como fizemos notar, pelo crescimento económico que marcou a segunda metade do século XX.
O problema é que a perspetiva de John Rawls quanto ao mérito conduziu a um crescente enfraquecimento de uma ideia que é, no seu âmago, profundamente democrática: a valorização do mérito, permitindo o reconhecimento dos talentos naturais (mesmo que resultado de sorte), permite questionar e fragilizar os privilégios familiares ou sociais pré-estabelecidos.
É precisamente isso que Tucídides coloca na boca de Péricles, na sua oração fúnebre após o primeiro ano da Guerra do Peloponeso. O orgulhoso ateniense faz o elogio da sua cidade e do seu regime democrático nestes termos:
“De acordo com as nossas leis, somos todos iguais no que se refere aos negócios privados. Quanto à participação na sua vida pública, porém, cada qual obtém a consideração de acordo com os seus méritos e mais importante é o valor pessoal que a classe a que se pertence; isto quer dizer que ninguém sente o obstáculo da sua pobreza ou da condição social inferior, quando o seu valor o capacite a prestar serviços à cidade.”
O talento, o mérito e o esforço tornam as sociedades mais abertas e, nessa medida, mais igualitárias – não menos. E, nessa medida, o ataque ao mérito revela-se mais prejudicial para aqueles que tiveram azar na lotaria social, pois a única forma que têm de superar as suas circunstâncias é suprimida, e essa supressão torna os países mais corrompidos: se não escolhemos os melhores, prevalecerão aqueles que se fazem escolher.
Mas o ataque ao mérito também não resolve o problema da lotaria natural, como veremos na próxima semana.
observador