As coisas não nascem do vácuo

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As coisas não nascem do vácuo

As coisas não nascem do vácuo

1Não sou licenciado nem recenseado / Com paciência, há-de aparecer alguém credenciado, com moral que me faça votar, me faça lutar, me faça notar, e faça esgotar a campanha eleitoral / Por enquanto é só comédia, money manipula os média, que se excedem a assustar o nosso povo com medo / Sei que é o meu futuro, mas não vou acordar cedo para pôr um voto nulo ou eleger um chulo ou um cherne / Eu não preciso de reflexão, eu já ‘tou decidido, eu só voto na verdade e não a vejo em nenhum partido / A minha previsão é o privilégio garantido para um puto no colégio neto de algum conhecido / E eu sou a percentagem que a sondagem nunca mostra / Eu sou a mente exausta da miragem mal composta / Eu sou a indiferença e a insatisfação / Eu sou a anti-comparência, eu sou abstenção/ A linguagem não é crua e tendo mais remorsos, e eu nunca o vi na rua a não ser em outdoors/ Já não pertencem ao povo, pensem um pouco.

São vários excertos de um poema de Sam The Kid. A canção chama-se “Abstenção”, é de 2006.

2Ricardo Leão, socialista, presidente da Câmara Municipal de Loures, deu na semana passada uma entrevista à SIC Notícias, onde afirmou que os populismos não se combatiam com «não passarão» e retóricas semelhantes, mas conhecendo o quotidiano das pessoas e respondendo-lhes com acções. Segundo percebi e reproduzo de cor, Loures tinha cerca de 2500 inquilinos municipais, com rendas mensais entre os 10 e os 15 euros, metade dos quais não pagavam renda. A Câmara notificou-os, propondo planos de pagamentos e, como eventual sanção pelo incumprimento, o despejo. Vários responderam, cerca de 18% dos inquilinos optaram por se manter em silêncio, continuando sem pagar renda. A Câmara vai despejá-los para dar lugar a parte dos cerca de mil pedidos de alojamento que tem pendentes, à espera de apoio municipal, e até agora impedidos de aceder a habitação pública porque 18% dos actuais inquilinos, além de não pagarem renda, não se dignam sequer a responder ao seu senhorio. Afirmou também que a realidade, em termos de segurança, contraria as estatísticas, e que, por essa razão, a Câmara Municipal adjudicou cerca de uma dezena de viaturas para ceder à PSP, promovendo o policiamento de proximidade. Durante a campanha eleitoral, Ricardo Leão e outros autarcas socialistas foram destratados pela superioridade moral do Largo do Rato, da esquerda bem-pensante e comentadores associados.

3 Na segunda-feira após as eleições, apanhei um TVDE cujo condutor era cigano. Na rádio tocavam canções pop-evangélicas e ecoavam mensagens religiosas. Perguntou-me se queria saber a opinião dele sobre os resultados eleitorais – não queria eu outra coisa. Foi simples e directo: «Eu não votei nele. Não gosto que se trate toda a gente da mesma maneira, como se fossemos todos iguais. Não somos. Mas dou-lhe razão em muita coisa. Eu sei que ele tem razão em muita coisa.»

4Em 2002, a RTP tinha um programa de debate semanal, que antecedeu o “Prós e Contras”, que se chamava “Gregos e Troianos”, conduzido (porque não se pode dizer que fosse moderado) por Júlia Pinheiro. O ambiente era de quase permanente gritaria e insulto, de polarização procurada e oferecida. Um dos programas foi sobre imigração, e foi lançada ao público a pergunta «Portugal pode receber mais imigrantes?». O “não” ganhou com 56% dos votos. Quinze anos depois, o PS, para fazer um favor à extrema-esquerda, optou por desregular as leis migratórias e da nacionalidade, abrindo portas a uma mudança social e cultural abrupta, sem serviços capazes, e fez um favor a máfias. Quebrou a coesão social e acabou a destratar inclusive os próprios imigrantes.

5Algures em 1993, 1994, recebemos no bairro uma família de goeses vindos de Moçambique. Os dois filhos foram colocados na minha turma. De imediato receberam apoio social escolar. Visitas de estudo gratuitas, alimentação escolar, material. Pouco tempo depois, a família comprou um carro novo. O meu pai foi à escola perguntar à direcção por que razão se dava apoio social a famílias que podiam comprar carros novos, quando ele não tinha nenhum e não beneficiava de nenhum apoio. Explicaram-lhe que se tratava de «minorias étnicas» e que isso, por si só, justificaria o apoio, já que os rendimentos não eram analisados. Acabaram por cancelar os apoios, a vida de todos continuou.

6Como Sam The Kid, nunca achei que o sítio de onde venho pudesse ter qualquer significado positivo ou negativo, ou que tivesse sequer de ser invocado como argumento. Não é. Mas nestes tempos em que se fala tanto de «bolha mediática» e de políticos que só vemos em outdoors, como na canção, o sítio de onde venho, não passando a argumento, traz-me mais elementos para compreender o país de 2025. Andei em escolas secundárias onde entravam pistolas e facas, onde éramos ameaçados, espancados e assaltados pelo menos semanalmente. Fui agredido várias vezes na rua e na escola. Raramente era assaltado porque estava proibido de andar com dinheiro na rua. Se precisasse de levar dinheiro para escola, ia espalhado entre peúgos e roupa interior. Aprendi a não colocar mais do que uma moeda em cada bolso ou sapato para não se ouvir o tilintar e, assim, reduzir a probabilidade de ser revistado e, acto contínuo, assaltado. Quando comecei a usar relógio no pulso já era mais do que adulto. Nunca apresentei uma queixa na polícia. A estatística diz que a minha infância e adolescência foram absolutamente seguras e pacíficas. Não foram. Ricardo Leão, socialista, compreenderá.

7Há quem recorde, aqui e ali, um concurso da RTP, transmitido em 2007, que resultou em Salazar ser considerado pelos telespectadores como o maior português de sempre, como quem tenta demonstrar que a semente do fascismo anda no ADN nacional há muito tempo e se revela agora em termos eleitorais. A última edição da revista Visão de 1999, em parceria com a SIC, sem os votos ignorantes das massas populares e ainda isenta da influência de notícias falsas, colocava Salazar como a maior figura do século XX português.

8O Banco de Portugal divulgou, na semana passada, um relatório dando nota de que apenas 11% dos filhos de famílias com rendimentos e escolaridade mais baixa consegue concluir o ensino superior. É a chamada solidariedade intergeracional da estagnação.

9Nos últimos dias, temos também assistido a uma quebra na literacia e na formação dos portugueses. Durante anos, ouvimos falar dos génios que a direita e Passos Coelho mandavam embora de um país que não tinha sido levado à bancarrota, mas que era gerido por essa mesma direita e Passos Coelho com ruindade. Descobrimos agora, depois de serem conhecidos os resultados eleitorais nos círculos da emigração que a nossa diáspora é, afinal, composta por gente burra. Além de ignorante, descobrimos também que os portugueses, cá ou no estrangeiro, só votaram massivamente em André Ventura por serem muito permeáveis a contas falsas e desinformação. O Nascer do Sol, há semanas, dava nota de que o Partido Socialista tinha investido 40 mil euros em contas falsas nas redes sociais. Pelo que se deduz que os portugueses só são ignorantes e alvo fácil de propaganda quando votam onde não devem. Os estudos revelam também que o eleitor médio do Chega é pouco letrado e não tem instrução superior. Como tantos deles votavam antes no PS, no PSD, no PCP ou noutros, e essa baixa instrução nunca foi um problema, presumo que quando o voto era dirigido a socialistas e comunistas era feito por licenciados, que agora perderam as licenciaturas, votando em populistas. O novo ministro da Educação deve debruçar-se sobre este drama que estamos a viver.

10E as luminárias deste país, imagine-se, não sabem de que é que o país está farto.

observador

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