Paz à Putin: como não fazer um cessar-fogo

Comecemos pelo princípio, ou por mais uma ilusão diplomática com prazo de validade. Em 11 de março de 2025, a Ucrânia aceitou, com um entusiasmo forçado pela administração Trump, uma proposta para um cessar-fogo de 30 dias. Era, no papel, um primeiro passo para a paz. Na prática, foi uma daquelas encenações a que até os diplomatas mais ingénuos assistem com o copo meio cheio… de cepticismo. Marco Rubio, de serviço à política externa norte-americana, apressou-se a dizer que “a bola estava no campo russo“. Moscovo, como seria de esperar, não jogou com fair play, mas com a frieza calculista de quem já decidiu o resultado do jogo.
Putin, fiel à sua cartilha estratégica, acenou com simpatia à ideia de cessar-fogo, mas logo exigiu condições que transformariam a trégua em capitulação. Ao contrário do que muitos acreditaram e ainda acreditam, o Kremlin não está muito interessado no fim de guerra, a não ser nos seus próprios termos.
Mais de três meses depois, enquanto os delegados de segunda categoria se reuniam em Istambul e as câmaras registavam as amenidades protocolares, as forças russas continuam a tentar avançar na Ucrânia e a bombardear cidades. A reunião em si mesma foi uma mera tertúlia para encanar a perna à rã.
Putin sabe perfeitamente que a janela estratégica continua escancarada. O Ocidente, entre um protesto climático e um simpósio sobre diversidade, mostra sinais de fadiga estratégica. A OTAN, por sua vez, encontra-se em estado de semi-hipnose, debatendo com afinco se ainda acredita no conceito de dissuasão. Do outro lado, a Rússia não perde tempo com retórica: mergulhou de cabeça numa economia de guerra, alimentada com a assistência entusiástica dos seus companheiros de trincheira, Irão, China e Coreia do Norte. A sua indústria militar não descansa, enquanto no Ocidente se continuam a marcar reuniões para decidir o que já devia ter sido decidido antes de a guerra começar.
E como se não bastasse, o regime de Putin tornou-se estruturalmente adicto ao conflito. A economia russa gira agora em torno da engrenagem militar, incrementando a produção de armamento e desviando recursos públicos para manter as máquinas a trabalhar tendo em vista a criação de mais unidades militares. Os oligarcas, outrora meros saqueadores da transição pós-soviética, reinventaram-se como investidores do esforço de guerra. Lucro garantido, risco zero, desde que o conflito não acabe. A paz, nesse contexto, seria um incómodo. Pior: uma calamidade. Não há dividendos em carros de combate parados e, já agora, há muitos em material de fraca qualidade que não dure muito tempo no campo de batalha, como tem acontecido.
Além disso, a guerra oferece ao regime um pretexto ideal para o controlo interno totalitário. A narrativa patriótica justifica repressão, censura, prisões políticas e o esmagamento de qualquer dissidência sob o manto da segurança nacional. Uma eventual desmobilização traria consigo, não só uma desaceleração económica mas também um vácuo ideológico que poderia ser catártico. O regime construiu uma realidade paralela em que a Rússia está sob cerco e luta pela sobrevivência civilizacional, e essa realidade, para continuar a ser credível, exige conflito permanente.
Mais ainda: para Putin, uma paz que não consagre os seus objectivos, a submissão da Ucrânia, a consolidação territorial e o reconhecimento do seu império, seria não só um monumental fracasso estratégico, mas também um risco pessoal. Na Rússia, quem perde, cai em desgraça e das varandas!
A questão, fora da bolha em que Putin se enclausurou, é que, por trás da fachada de força, o país enfrenta sérias debilidades estruturais. A economia russa é relativamente pequena e, embora adaptada a um modelo de guerra, está cada vez mais isolada e tecnologicamente atrasada. A fuga de cérebros, as sanções, e a crescente dependência de exportações energéticas para mercados como a China, expõem as vulnerabilidades de longo prazo. Moscovo tornou-se, em muitos aspectos, um fornecedor subalterno da potência asiática, trocando autonomia estratégica por liquidez imediata. Digamos que se está a transformar paulatinamente num peão sob controle do Mandarim.
A demografia não joga a seu favor: uma população envelhecida, em declínio e marcada por enormes perdas humanas fragiliza a base sobre a qual qualquer ambição imperial tem de assentar. A Rússia não tem homens para um império, e muito menos para guerras prolongadas de ocupação. Talvez por isso, a retórica nuclear se repita com tanta frequência. As regulares ameaças de Putin e dos seus ventríloquos como Medvedev, funcionam como o gesto teatral do gorila que bate no peito: uma exibição de força para assustar e mascarar a flacidez dos músculos.
Numa Rússia onde a realidade já não sustenta a grandeza prometida, e onde a nostalgia soviética foi reciclada em versão imperial kitsch, a única alternativa ao colapso do sonho é prolongar indefinidamente a agressão, mesmo que à custa da ruína nacional, à espera que os adversários se ponham de joelhos, como a confraria dos ex-KGB acreditava que iria suceder. Nessa bolha saudosista, que, entretanto, cresceu, um cessar-fogo mal negociado seria visto não como trégua, mas como traição. E traição, num regime que se revê na força e se ajoelha perante a estátua do homem-forte, é um convite à implosão. Como certos estados que ainda se julgam impérios, a Rússia prefere afundar de baioneta em punho do que admitir que a história já lhe passou à porta e não tocou à campainha.
Não é, pois, difícil perceber as razões pelas quais Moscovo recusa parar. Para Putin, esta guerra era a oportunidade histórica. Desde 2022, quando falhou a blitzkrieg inicial, a Rússia reviu a sua doutrina de vitória: agora só lhe resta a atricção prolongada, o desgaste humano e logístico da Ucrânia, o cansaço político do Ocidente, a saturação mediática, e a desmoralização da resistência ucraniana. Esta é a nova fase: tentar ganhar por exaustão. A Alemanha tentou isto na Primeira Guerra Mundial, mas foi ela que saiu tosquiada quando foi a procura de lã.
Falar em acordos de paz com a Rússia é hoje, objectivamente, um exercício de ficção. Todos os acordos assinados, do Memorando de Budapeste ao Tratado de Amizade de 1997 passando pelos Acordos de Minsk, foram violados pelo Kremlin com uma regularidade quase pedagógica. Putin não vê os tratados como compromissos, mas apenas como pausas operacionais, como aconteceu na Finlândia, na Chechénia, na Ucrânia, etc.
Qualquer futuro acordo, se vier a acontecer, durará o tempo necessário à Rússia para reconstituir forças e lançar a próxima fase do conflito. O objectivo final permanece intacto: transformar a Ucrânia num Estado vassalo, amputado territorialmente, politicamente controlado e indefeso militarmente. Uma Bielorússia 2.
Donald Trump, com aquele seu instinto geopolítico que faz Chamberlain parecer um falcão, parece ainda não ter compreendido a natureza desta guerra. Quer um acordo a qualquer preço, não para a Ucrânia ou para a Europa, mas para ele próprio pendurar um troféu na parede. Acredita que pode “negociar com força”, talvez com o mesmo tipo de força que aplicaria num reality show. Infelizmente, o Kremlin não joga esse jogo. Mesmo que a intenção fosse separar a Rússia da China, o efeito prático é outro: Putin aplaude, Xi observa com um sorriso, os aliados europeus estremecem e a confiança no Ocidente evapora-se ao ritmo de mais um tweet presidencial.
No terreno, a Ucrânia continua a resistir, com mais estoicismo do que meios, enquanto os seus aliados trocam promessas por comunicados e munições por notas diplomáticas. Moscovo anexou oficialmente cinco regiões e não dá sinais de querer devolvê-las. Uma negociação realista implicaria discutir esses territórios, compensações, o retorno de populações sequestradas, etc. Mas o que temos, em vez disso, é o habitual desfile de reuniões intermináveis e cimeiras repletas de indignações bem redigidas, mas sem qualquer consequência prática.
No fim, a verdadeira pergunta não é se haverá cessar-fogo, mas se ainda há quem leve a sério a ideia de que Vladimir Putin, o homem que usa tratados como papel reciclável e faz da guerra uma ferramenta de governação, vá deter-se por boa vontade ou tinta num papel.
Porque a guerra, convém repetir, não é uma fatalidade. É uma escolha. E Putin escolheu-a, com gosto, método e uma boa dose de messianismo imperial.
Chegados aqui, restam dois caminhos: ou se deixa Putin levar o troféu para casa e começamos a preparar a próxima guerra, que virá depois da digestão da Ucrânia, ou o Ocidente, em conjunto faz o que já devia ter sido feito. Ameaçar e cumprir o sequestro definitivo dos capitais russos congelados, aplicar sanções secundárias e aumentar, sem hesitações, o fornecimento de armas, munições e equipamentos à Ucrânia. Já agora, antes que o Kremlin tenha tempo para mais uma ronda de diplomacia de opereta.
observador