Obstetras do Barreiro recusam urgências no Garcia de Orta

Os obstetras do serviço de Ginecologia/Obstetrícia do Hospital do Barreiro — que a ministra da Saúde estará a preparar-se para convocar ‘à força’ para reforçar as escalas de urgências do Garcia de Orta — não querem ser mobilizados para Almada, garante ao Observador fonte conhecedora do tema. A maioria dos especialistas tem mais de 55 anos e está, por isso, dispensada de realizar serviço na urgência obstétrica. Apenas dois dos sete médicos estão abaixo dessa idade e um deles já avisou que rescinde o contrato caso a mobilização forçada avance. A solução encontrada pelo Ministério da Saúde para reforçar as escalas do Garcia de Orta pode, no final, ter efeitos muito limitados.
No Barreiro — e para manter a urgência obstétrica em funcionamento —, os médicos obstetras, nomeadamente os mais velhos, continuam a assegurar a urgência, apesar de a maioria dos clínicos estar acima da idade a partir da qual ficam dispensados de trabalhar nesse tipo de valência — os 55 anos. No entanto, essa disponibilidade que tem existido por parte dos obstetras pode mudar, caso a tutela decida mesmo mobilizar estes profissionais para preencherem escalas na urgência obstétrica do Garcia de Orta. “Fazemos [urgência] porque estamos em casa. Senão, não fazemos”, assegura a mesma fonte, garantindo que os médicos obstetras do hospital do Barreiro não estão disponíveis para prestar serviço no Garcia de Orta.
Na última sexta-feira, o semanário Expresso adiantava que a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, estaria a preparar a mobilização forçada dos obstetras do hospital do Barreiro para a urgência do hospital Garcia de Orta, em Almada, e que o despacho — a informar sobre a transferência forçada — já estaria pronto, entregue à equipa de juristas, faltando apenas a assinatura da ministra da Saúde. Uma notícia, de certo modo, surpreendente, tendo em conta que Ana Paula Martins repetira por diversas vezes, ao longo das últimas semanas, que — antes de qualquer concentração de equipas — teriam de ser realizadas negociações com os sindicatos médicos, uma vez que a deslocação para outro local de trabalho é uma matéria de cariz laboral, e os médicos não são obrigados a deslocarem-se para outros concelhos.

▲ O Ministério da Saúde, liderado Ana Paula Martins, já decidiu que vai a concentrar resposta obstétrica das zonas norte da Península de Setúbal no hospital Garcia de Orta, Almada
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Contudo, dois acontecimentos terão precipitado a decisão de Ana Paula Martins de avançar ‘à força’ e sem negociações prévias com a mobilização dos médicos: por um lado, o encerramento simultâneo das três urgências obstétricas da Península de Setúbal no segundo fim de semana de setembro; por outro lado, a não concretização do plano para reforçar o serviço de Obstetrícia do Garcia de Orta com sete médicos vindos do setor privado (até ao momento, apenas dois estão contratados). O reforço das urgências do Garcia de Orta com clínicos do Barreiro é ukma solução que, a confirmar-se, merece severas críticas por parte dos sindicatos e da própria Ordem dos Médicos.
“Esta solução vai complicar ainda mais a situação que vivemos. A solução não é uma deslocação forçada, porque isto cria revolta nas pessoas”, diz fonte conhecedora do tema sobre a forma como a informação das intenções de Ana Paula Martins foi recebida pela equipa. A mesma fonte garante que obrigar os obstetras do Barreiro a deslocarem-se para o Garcia de Orta “é um tiro no pé, se for avante”.
Segundo a fonte ouvida pelo Observador, o hospital de Nossa Senhora do Rosário, no Barreiro, conta atualmente com uma equipa de sete obstetras, sendo que, desses, cinco têm mais de 55 anos e estão, por isso, dispensados da realização de serviço de urgência em período diurno ou noturno. A dispensa enquadra-se no âmbito quer dos acordos assinados entre o Governo e os sindicatos médicos em 2012 quer dos Acordos Coletivos de Trabalhos dos Médicos, que se encontram em vigor. “Os trabalhadores médicos, a partir da data em que perfaçam 55 anos de idade, se o declararem, são dispensados de trabalho em serviço de urgência”, esclarece a Administração Central do Sistema de Saúde num documento com esclarecimentos sobre a organização de trabalho da carreira médica.
Dos sete médicos que prestam serviço no serviço de Ginecologia/Obstetrícia do Hospital do Barreiro, a maioria está em dedicação plena, um regime que prevê que os médicos possam ser mobilizados para trabalhar em serviço de urgência num raio de 30 quilómetros do posto de trabalho de origem. No entanto, a mobilização no âmbito deste regime só se aplica aos médicos com menos de 55 anos, uma vez que o fator idade se sobrepõe, diz a mesma fonte. Uma informação confirmada ao Observador pela presidente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), Joana Bordalo e Sá, que garante que os “limite de idade dos ACT se sobrepõem à dedicação plena”.
"Fazemos [urgência] porque estamos em casa. Senão, não fazemos"
Fonte conhecedora do tema ao Observador
A posição de força por parte da tutela, que estará a preparar uma mobilização forçada dos obstetras, pode vir a gerar resultados muito limitados. Para além dos cinco médicos com mais de 55 anos (que, para além de não serem obrigados a deslocar-se do ponto de vista legal, também não o pretendem fazer), uma outra obstetra ameaça rescindir o contrato caso a medida avance. “Uma médica [do serviço] diz que, se isto acontecer, rescinde. É quase obrigar os mais novos a saírem do SNS. Não se entende“, diz a fonte que falou com o Observador. Ou seja, o despacho que estará a ser ultimado no Ministério da Saúde poderá servir apenas para mobilizar um médico, o que acontecer, teria um impacto muito limitado na elaboração das escalas da urgência de Obstetrícia do Garcia de Orta, que continuam muito deficitárias.
“Isto é inútil, porque não há médicos para mobilizar. Os médicos já trabalham com enormes dificuldades, com equipas desfalcadas, com mais horas extra”, sublinha a presidente da FNAM, que defende que, para reforçar a resposta obstétrica na margem sul, “o que faria sentido era existir um reforço das equipas”, com a contratação de mais profissionais e a melhoria das condições de trabalho oferecidas aos médicos.
A ministra da Saúde conhece, aliás, os riscos de avançar com avançar com mobilizações forçadas de médicos para outros hospitais. No verão de 2023, quando Ana Paula Martins era presidente do Hospital de Santa Maria, os médicos obstetras daquela unidade receberam indicações para se deslocarem para o Hospital São Francisco Xavier, onde iria ficar concentrada a urgência obstétrica, devido ao fecho da maternidade do Santa Maria para obras. A mobilização gerou forte contestação interna, levou ao afastamento do então diretor de serviço, Diogo Ayres de Campos, e à saída por rescisão de contrato de oito médicos.
No último domingo, dia 21 de setembro, o Garcia de Orta — cuja urgência obstétrica deveria estar a funcionar sem limitações — viu-se obrigado a encaminhar as utentes para o hospital do Barreiro porque voltou a não conseguir médicos em número suficiente para garantir a totalidade da escala. Desta forma, entre as 8h e as 20h, a urgência esteve apenas referenciada aos casos encaminhados pelo Centro de Orientação de Doentes Urgentes do INEM, sendo que durante a maior parte do dia o Hospital do Barreiro esteve a dar resposta a toda a Península de Setúbal na área obstétrica.

▲ A presidente da FNAM diz que medida do Ministério é "inútil" porque "não há ninguém para mobilizar"
TIAGO PETINGA/LUSA
O Observador questionou o Ministério da Saúde sobre se tem a garantia de que os médicos do Barreiro vão aceitar fazer urgência no Garcia de Orta, se houve contactos com o serviço antes da elaboração do despacho que prevê a mobilização forçada e quando se prevê a publicação do despacho, mas o gabinete de Ana Paula Martins não respondeu a nenhuma das perguntas. O ministério referiu apenas que “as equipas dos Ministérios da Saúde e das Finanças estão a ultimar o enquadramento jurídico da futura urgência regional da Península de Setúbal, que dará resposta às necessidades das mulheres grávidas e recém-nascidos da região”, sendo que “o diploma pretende, também, assegurar a justa e devida compensação dos profissionais que trabalham no SNS”.
Contactado sobre a possível mobilização de médicos para Almada, a Unidade Local de Saúde do Arco Ribeirinho, que abarca os hospitais do Barreiro e Montijo, também não enviou qualquer resposta.
O serviço de Ginecologia/Obstetrícia do Hospital do Barreiro realiza, por ano, cerca de 1.200 partos, explica a fonte contactada pelo Observador (e que não quis ser identificada), cobrindo uma área composta pelos concelhos de Barreiro, Moita, Montijo e Alcochete e também pela zona da Quinta do Conde (já no concelho de Sesimbra).
"A solução não é uma deslocação forçada, porque isto cria revolta nas pessoas"
Fonte conhecedora do tema ao Observador
Caso venha a ser concretizada a criação de uma urgência regional obstétrica no Hospital Garcia de Orta, com a consequente concentração de equipas, as zonas mais a leste do concelho do Montijo (nomeadamente a zona de Pegões) ficarão a 70 quilómetros da urgência obstétrica de referência, em Almada — uma distância superior ao recomendado pelos peritos. Em junho, o coordenador da Comissão Nacional da Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente, Alberto Caldas Afonso, salientava que a segurança clínica para os utentes fica assegurada com uma distância entre pólos de até 50 quilómetros.
No entanto, no caso da Península de Setúbal, já não haverá ‘marcha-atrás’ na decisão de concentrar a urgência obstétrica do Barreiro no Garcia de Orta. A ministra da Saúde anunciou na Assembleia da República, na semana passada, que o Governo vai lançar, já a partir de 2026, o Centro Materno-Infantil de Setúbal, que ficará localizado no perímetro do Hospital Garcia de Orta, e que contará com equipas dos três hospitais da região (Garcia de Orta, em Almada; Nossa Senhora do Rosário, no Barreiro; e São Bernardo, em Setúbal), sendo que a urgência de Obstetrícia do Hospital de Setúbal se manterá aberta, de modo a dar apoio à região do Litoral Alentejano. Prevê-se que o o Centro Materno-Infantil esteja concluído dentro de três a quatro anos.
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