O fim das manobras dilatórias e uma reforma que passa por concretizar medidas passo a passo. O que dizem os advogados do programa para a Justiça?

O Governo apresentou o programa em junho e, apesar da polémica, insiste em reforçar os poderes do juiz para travar os expedientes dilatórios dos arguidos.
O Programa de Governo na área da Justiça aproveitou as conclusões do grupo de trabalho criado pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM) com o objetivo de melhorar a eficácia da Justiça e mitigar o prolongar dos megaprocessos.
Para isso, o Governo promete a criação de um grupo de trabalho que elabore um anteprojeto que aumente os poderes legais dos juízes para travar a utilização de expedientes dilatórios por parte dos arguidos – ou mesmo dos lesados. Mas deixou cair o pagamento de multas que era proposto pelo CSM. Assim, o objetivo passa por “eliminar expedientes inúteis, legislar de forma clara, coerente e ponderada, gerando um consenso alargado, político e social, para que a reforma da Justiça seja implantada com solidez e tenha resultados adequados”.
O bastonário da Ordem dos Advogados, João Massano diz que “encara positivamente a eliminação de expedientes verdadeiramente inúteis, que constituem obstáculos à celeridade processual”. Contudo, “é fundamental distinguir entre burocracia desnecessária e direitos fundamentais de defesa. Os recursos interpostos pelos advogados não são expedientes dilatórios – são instrumentos constitucionais essenciais da ampla defesa e pilares do Estado de Direito democrático. O direito ao recurso garante a correção de erros judiciais e a uniformização da jurisprudência. A reforma deve processar-se com critério, preservando as garantias fundamentais enquanto elimina verdadeiros entraves burocráticos”, diz João Massano.
No texto do programa de Governo, é assumida a necessidade de “uma reforma sólida” no setor, mas “prosseguida passo a passo, e com um horizonte que vá para além de uma legislatura. Para ser concreta, a reforma da Justiça tem de ser executada, medida a medida e prosseguindo objetivos de longo prazo”.

No programa está ainda a proposta de revisão dos prazos processuais, “de forma a garantir a sua efetiva aplicação e adequação e contribuir para processos mais expeditos”. A tutela pretende promover “julgamentos rápidos”, através de um incremento da celeridade processual “quando esteja em causa a prática de crimes violentos ou de especial gravidade, em particular em casos de detenção em flagrante delito”. Pretende criar formas de gestão e eficiência processual, criando “um mecanismo permanente de avaliação das pendências e celeridade processual, através da publicação de um relatório anual”.
O bastonário da Ordem dos Advogados, João Massano, explicou à Advocatus que concorda “plenamente” com a estratégia de medidas passo a passo proposta pelo Governo. “Esta abordagem reflete exatamente a visão que temos defendido na Ordem dos Advogados: uma reforma por áreas, priorizando onde a urgência social é mais evidente. A experiência tem-nos ensinado que reformas precipitadas, sem o adequado planeamento e participação dos operadores judiciários, frequentemente resultam em soluções ineficazes ou mesmo contraproducentes”, diz o líder dos advogados. A Ordem dos Advogados “permanecerá vigilante e construtiva, trabalhando colaborativamente com o Governo para assegurar que estas reformas se traduzam em melhorias concretas para os cidadãos e para todos os operadores do sistema judicial”.
Paulo de Sá e Cunha, counsel da SRS Legal
É difícil não concordar com as linhas programáticas enunciadas pelo Governo a respeito da reforma da Justiça. Na formulação vaga e genérica adotada e nos tópicos destacados, concordo com praticamente tudo. Os principais problemas estão de há muito identificados e até me parece que geram um consenso alargado, seja quanto ao diagnóstico seja quanto às possíveis “terapêuticas” a adotar. Diria que, em larga medida, os problemas da Justiça não passam por – e não têm – solução em meras alterações legislativas. O Governo, aliás, reconhece-o expressamente.
Quanto à metodologia que o Governo se propõe adotar, não me parece que se preconize o recurso a “medidas avulsas”, no sentido de intervenções pontuais e casuísticas, mas sim uma abordagem gradual e ponderada das alterações a introduzir no sistema de Justiça. E esta parece-me ser a forma correta de defrontar os problemas, cuja solução – como também se reconhece – impõe que se tomem medidas cujo horizonte temporal excede o de uma legislatura.
Em suma, a expectativa com que fico é positiva. É animador constatar que parece haver sensatez e que se pretende dedicar estudo e ponderação quanto às alterações a introduzir, sem o excesso de voluntarismo e a precipitação que já se verificou no passado, em que algumas medidas – apesar de bem-intencionadas – acabaram por agravar a situação, ao invés de a melhorar.
E como encara esta referência a “expedientes inúteis” que têm de ser eliminados?Essa referência suscita-me maior reserva, sobretudo porque relacionada com propósitos de imprimir maior celeridade processual. Neste tocante, não posso deixar de expressar alguma preocupação, em particular no que respeita à área da Justiça penal. São conhecidas as medidas preconizadas por alguns setores, alguns especialmente qualificados – como, recentemente, o Conselho Superior da Magistratura veio defender publicamente – que frequentemente associam a morosidade processual aos apelidados “expedientes dilatórios” dos advogados, propugnando alterações legislativas visando restringir ainda mais as garantias de defesa em processo penal. Se esta é a linha que o Governo visa prosseguir, diria que estamos no mau caminho.
Mas não deixo de concordar que se torna forçoso eliminar muito do que de arcaico ainda perpassa a nossa legislação, frequentemente enredada em formalismos anacrónicos e completamente desfasados da realidade hodierna. Desburocratizar, desmaterializar o – ainda frequente – recurso ao uso do papel e imprimir maior informalidade a determinadas diligências, será uma ótima forma de imprimir maior celeridade às decisões e alcançar o propósito de uma justiça mais pronta e, consequentemente, mais justa. Os recursos tecnológicos hoje disponíveis permitem fazê-lo com a observância de requisitos de segurança aceitáveis e compatíveis com as exigências do sistema de Justiça. E, neste domínio – apesar muito já se ter inovado – muito está ainda por fazer.
Vamos “aguardar pelos próximos capítulos” e ver o que se têm em vista com essa referência a “expedientes inúteis”. Sendo certo que me parecem intoleráveis ideias como as de multar advogados pelo exercício de legítimos direitos de defesa dos seus constituintes ou restringir o efeito suspensivo de recursos, com o confessado propósito de assegurar uma “via rápida” para a condução à prisão.
Em jeito de conclusão, uma medida que me parece fazer falta – e o Governo não a refere – é a de introduzir critérios de accountability na atividade dos operadores judiciários. É um imperativo democrático e de cidadania, mas que me parece ser convenientemente “esquecido” pela classe política em geral.
Ana Rita Duarte de Campos, sócia da Abreu Advogados
Concordo. Há coisas muito simples que permitiriam melhorar muito o nosso sistema de justiça. O Programa do Governo dá disso um exemplo, ao nível da justiça penal: a digitalização, que tem um longo caminho para fazer. Curiosamente, eu encontro uma leitura transversal na Parte do Programa do Governo dedicado à justiça penal, que não é nova e já vem do Governo anterior: corte de garantias processuais. Penso que irão reduzir a instrução a uma fase de saneamento processual sem provas admissíveis, o que é um clamoroso erro e avançarão com a aplicação do regime da perda alargada para as situações em que não haja decisão condenatória, que é outro erro. E a maior parte das pessoas só vai perceber que é um erro quando tiver de defender-se.
Para terminar a resposta com uma nota positiva: destaco a preocupação com os direitos das vítimas e dos inimputáveis. Estes últimos têm sido muito esquecidos e é algo de que pouco se fala, infelizmente. Há situações absolutamente dramáticas.
E como encara esta referência a “expedientes inúteis” que têm de ser eliminados?Eu penso que se trata de algumas redundâncias que podem ser apontadas à lei processual penal, por exemplo, em matéria de notificações. Os arguidos são notificados duas vezes da acusação e/ou da decisão instrutória e não há razão alguma para isso. Se for para suprimir notificações que, atualmente, têm de ser feitas ao arguido e ao seu defensor (e por boas razões assim é), creio que já não estamos a falar de redundâncias, apesar de quem possa vê-las como tal. Eu gostava, todavia, de assinalar um aspeto, constante do Programa do Governo, a propósito do qual surge essa referência: a preocupação com a celeridade, “da perspetiva do utilizador”. Eu preferia que a preocupação fosse a da eficiência (coisas tão simples como garantir que as notificações são feitas a tempo), porque, sinceramente, a celeridade não é um valor que se imponha por si só. A justiça carece do tempo certo e eu sinto alguma tendência para “acelerar” as diligências (não os processos) desde a pandemia. Depois vieram as greves. Celeridade pode dar em superficialidade, em más decisões que, com a prática judiciária (não a lei) em matéria dos pressupostos dos recursos, em muitos casos significa denegação de justiça. É preciso ter muito cuidado com este aspeto.
João Medeiros, sócio fundador da MFA Legal
Tanto quanto me é dado a perceber, o programa do Governo não refere que a justiça não precisa de uma reforma imediata. O que diz, sem utilização de um adjetivo referido ao tempo, é que precisa de “uma reforma sólida, prosseguida passo a passo e com um horizonte temporal que vá para além de uma legislatura”.
Em termos de princípio, estamos inteiramente de acordo. A reforma deve ser imediata, deve ser empreendida por áreas do direito, e sem intervenções disruptivas, cujos prejuízos de incerteza para os operadores judiciários e para os cidadãos, trazem sempre mais prejuízos do que benefícios. Claro está que é muito fácil manifestar-se apoio a um princípio geral. Depois, e como diz o povo, é no detalhe que se esconde o diabo…
Atrevendo-me a levantar a ponta do véu já no domínio do detalhe, sou de opinião que a justiça do Século XXI deve abrir mão de um princípio da legalidade rígido e favorecer mecanismos de oportunidade e justiça negociada, sempre sujeitos a um controlo jurisdicional efetivo. E isto tanto no domínio dos processos tributários – que são um escândalo nacional – como no próprio processo penal.
E como encara esta referência a “expedientes inúteis” que têm de ser eliminados?Tudo depende do que se deva entender como “expedientes inúteis”. Se, por “expedientes inúteis” se tiver em vista atos processuais que, aos dias de hoje, não têm cabimento e provocam demora nos processos, estamos todos de acordo. Apenas a título meramente exemplificativo, carece de qualquer sentido a marcação de diligência destinada a comunicar aos sujeitos processuais a decisão instrutória. Tal decisão pode ser notificada aos mandatários e defensores por email, sem que advenha daí qualquer prejuízo para os direitos dos cidadãos e com manifesta poupança de tempo, designadamente, de compatibilização de agendas. Como este, muitos exemplos podem ser encontrados aos dias de hoje nas nossas leis adjetivas, cuja ablação traria ganhos de celeridade sem prejuízos ao nível das garantias. Ao invés, se a coberto de supostos “expedientes inúteis”, se pretenderem suprimir garantias de defesa dos cidadãos, do que se trata não é celeridade processual, é de justiça acelerada. E também, neste particular, como diz o povo que é sempre sábio, depressa e bem não há quem….
Alexandra Mota Gomes, sócia da Antas da Cunha Ecija
Não considero que do Programa do Governo resultem apenas “medidas avulsas” para o setor da justiça. Quero acreditar que o Programa de Governo pugna antes por uma reforma faseada, estratégica e articulada, orientada por objetivos concretos e sustentados, e cujas metas, dada a sua extensão, ultrapassam necessariamente o horizonte de uma só legislatura. Vejo o Programa do Governo como uma definição programática dos objetivos a alcançar em cada uma das áreas nomeadas, identificando as medidas que se pretendem implementar, passo a passo, para as alcançar, nomeadamente para corrigir a morosidade processual, as dificuldades de acesso à Justiça por parte dos cidadãos, as carências tecnológicas, a necessidade de formação dos agentes judiciários e, como não poderia deixar de ser, o combate à corrupção.
Considero que a Justiça não deve ser objeto de reformas avulsas nem de intervenções súbitas e casuísticas motivadas por agendas de curto prazo. Concordo, assim, com a ideia de uma reforma faseada – mas que deve ser estratégica, sustentada em diagnósticos reais dos problemas, e acompanhada de uma avaliação constante. A celeridade processual, por exemplo, não é passível de ser imposta por decreto, constrói-se com meios, gestão processual eficiente e com o compromisso institucional.
Se “passo a passo” significa prosseguir uma reforma sólida, com metas claras e de execução rigorosa – então estamos a falar de um caminho responsável. Mas se “passo a passo” significar demoras inconsequentes ou falta de vontade política, a reforma servirá apenas para a manutenção do statu quo. E esse, claramente, já não serve o interesse da Justiça nem do cidadão.
E como encara esta referência a “expedientes inúteis” que têm de ser eliminados?O Programa contextualiza a expressão “expedientes inúteis” como parte de um esforço mais amplo de simplificação, racionalização e eficiência da justiça e da administração pública. A expressão parece apontar para excessos burocráticos, como formalismos redundantes, prazos desnecessários, e atos processuais que não acrescentam valor real ao processo judicial; legislação confusa ou excessiva, que pode gerar interpretações contraditórias ou atrasos processuais; e práticas processuais obsoletas, que continuam a existir por inércia institucional.
Nos meus mais de 20 anos de advocacia lido diariamente com estes ditos “expedientes” que são, efetivamente, tudo menos úteis. A burocracia infundada, as formalidades repetitivas, a exigência de atos meramente formais são entraves reais à justiça. Contudo, aquilo que por muitos pode ser entendido como uma “inutilidade”, pode ser a única garantia para quem tem de se defender.
Deste modo, encaro essa referência com simpatia crítica: eliminar expedientes, sim – mas com critério. Que não se confundam garantias processuais com obstáculos e que não se aproveite o pretexto da eficiência para retirar direitos aos cidadãos. O que precisamos é de clareza legislativa, coerência procedimental e, acima de tudo, de uma cultura institucional que valorize a substância sobre a forma.
Paulo de Jesus Correia, managing partner da Santiago Mediano
Os problemas com o sistema de justiça são vários e de naturezas diversas, pelo que a abordagem mais eficiente nunca será monolítica. Por exemplo, no âmbito de justiça penal, existe um problema óbvio e antigo com a fase de instrução que, para se mudar, implica uma revisão sistema do processo penal e da orgânica dos tribunais. Nesta área não há remendo que funcione.
O mesmo se diga quanto ao regime dos recursos em processo penal que têm tido muita exposição mediática.
Já no campo civil, o tema é muitas vezes mais organizativo ou de pormenor e pretende-se com a desorganização de secretarias, uso de metodologias de trabalho ultrapassadas, deficientes sistemas de avaliação internos. Aqui o trabalho para uma justiça eficiente será muito mais de bastidores e, de certa forma, mais difícil de fazer.
E como encara esta referência a “expedientes inúteis” que têm de ser eliminados? O mais importante neste campo é que o governo tenha uma perceção da urgência e relevância deste tema e tenho dúvidas que isso resulte do programa de governo. O sistema de justiça é um pilar fundamental do estado de direito e criando-se a convicção na população que o sistema protege ricos, poderosos e delinquentes e persegue os cidadãos cumpridores, o sistema perde sustentação. São processos demorados de erosão, mas o desfecho acaba por ser inevitável. Se o sistema falha como tem falhado naquilo que é mais visível, e todos temos assistido à prescrição de crimes atrás de crimes em processos muito mediáticos só para dar um exemplo, então o desfecho democraticamente inevitável será uma mudança estrutural do sistema que falhou e dos partidos políticos que protagonizaram esse falhanço. Não estou certo de que o governo entenda o momento. Raquel Caniço, advogada da Caniço Advogados
Concordo que uma verdadeira “reforma imediata” atendendo às enormes dificuldades que este setor enfrenta, seria contraproducente e difícil de concretizar olhando para a atual conjuntura política. É preferível de forma articulada, coerente e ponderada se executem medidas imediatas que, em concreto, tornem este setor governável, ainda que com uma visão a mais de uma legislatura.
Atualmente, diria que a questão das carreiras é tão importante para a subsistência do sistema judicial por este se encontrar no nível básico da pirâmide de Maslow, que as restantes medidas, só poderão funcionar se os tribunais estiverem dotados de meios humanos, com a formação adequada.
Destaco também como medida urgente, o reposicionamento da vítima de crime – de todos os crimes – enquanto sujeito processual no Código do Processo Penal, deixando de ser uma mera testemunha de acusação, merecendo por exemplo, a constituição obrigatória de mandatário entre muitas outras medidas e a reapreciação dos pressupostos de aplicação do julgamento em processo sumário, do flagrante delito e sua detenção ou ausência dela.
E como encara esta referência a “expedientes inúteis” que têm de ser eliminados?A expressão é infeliz e populista. É preciso esclarecer por um lado, o que são os meios legais e por outro, o abuso ou excesso no uso dos meios legais. O uso abusivo é que torna inútil a utilização do meio processual/legal, na medida em que pretende fazer protelar uma decisão impedindo assim, que ela seja tomada no seu tempo. É a oportunidade na utilização do meio legal que pode eventualmente ser susceptível de ser sindicada e esta apreciação sobre a sua inutilidade deve apenas e só passar pelo crivo da Ordem dos Advogados.
ECO-Economia Online