O Estado e a utilidade da ciência fundamental

A recém-anunciada reforma no Ministério da Educação foi uma das poucas até agora anunciadas pelo novo governo e ainda estamos no escuro sobre muitos dos seus detalhes. O anúncio da extinção da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), órgão que financia quase toda a investigação científica realizada em Portugal, e a sua respectiva substituição pela nova Agência para a Investigação e Inovação (AI2), provocou algumas reacções optimistas, mas sobretudo de preocupação e desaprovação, até pelo próprio Presidente da República.
Ironicamente, grande parte da comunidade científica nacional passou muitos anos a criticar a FCT, sentimento com o qual nunca concordei. As verdadeiras críticas e insatisfações não eram com a FCT, mas sim com ministros e decisores políticos que, sistematicamente, desvalorizaram este sector, subfinanciaram a ciência e, ainda por cima, o fizeram de forma irregular (daí a imprevisibilidade dos concursos, da sua realização, calendário e moldes). Na verdade, os concursos da FCT, com todos os seus problemas, sempre foram bem mais meritocráticos do que os concursos internos das universidades portuguesas, onde o mérito científico é demasiadas vezes posto em segundo plano, numa lógica de endogamia e de clientelismo.
Portugal está muito longe dos 3% do PIB de investimento em I&D (Investigação e Desenvolvimento) recomendado pela União Europeia, meta atingida por países como a Alemanha, Áustria, Dinamarca, Suécia, Bélgica, Finlândia. Fora da Europa, essa meta é largamente ultrapassada pelos Estados Unidos, Coreia do Sul e Japão, e a China está nos 2.6% do PIB em I&D, mas numa tendência de crescimento brutal ao longo da última década. Nós ficamo-nos pelos 1.7% do nosso PIB e, ao contrário do que se pensa, a maioria deste investimento é efectuado por privados. Apenas 0.6% são provenientes do Estado, sendo grande parte deste dinheiro proveniente de fundos europeus e não dos nossos impostos. São estas as prioridades do nosso país, partilhadas pelos governos recentes de PS e PSD. Ambos os partidos estão mais interessados noutros sectores com maior retorno eleitoral numa lógica de curto prazo.
Ainda não sabemos como irá funcionar a nova Agência nem como será atribuído o seu orçamento. Mas importa salientar algumas coisas nas pistas que já foram dadas. Em primeiro lugar, extinções e substituições de organismos do Estado frequentemente acabam mal — ou, pelo menos, passam por um longo período de adaptação onde tudo funciona pior. O exemplo recente do SEF/AIMA ilustra bem a dinâmica que muitas vezes decorre depois da decisão política inicial.
Em segundo lugar, e mais importante, a fusão das componentes da Investigação e da Inovação – que até agora estavam em organismos separados – numa única agência parece ser a grande alteração anunciada, confirmada por inúmeras declarações sobre a necessidade de “ligar” a investigação científica às empresas portuguesas e à economia. Ora, este tipo de declaração soa bem e certamente torna mais fácil recolher apoio político para o financiamento da investigação científica. É difícil para muitos eleitores imaginar a utilidade concreta da despesa pública em ciência quando comparada com outras áreas. E é ainda mais difícil sair de uma lógica em que o investimento em ciência deve ter um retorno económico e social palpável, que, para ser “visível”, acaba por ser inevitavelmente de curto prazo.
A investigação científica é habitualmente dividida em dois ramos: ciência aplicada (com fins comerciais e económicos imediatos) e ciência básica ou fundamental. A ideia de que a primeira traz maior retorno económico é generalizada — tanto entre políticos quanto entre eleitores —, bem como a ideia de que o investimento privado em I&D tem maior impactoeconómico. Na verdade, o que a investigação mostra é precisamente o contrário. O impacto e retorno da investigação básica são muito maiores, porque esta permite inovar em mais áreas. As patentes citam mais frequentemente a investigação científica dita “básica” do que a aplicada. A razão pela qual a investigação fundamental acaba por gerar um retorno maior é simples: é quase impossível prever todas as áreas e efeitos que uma determinada investigação pode trazer.
Numa análise recente feita por economistas, com base numa enorme base de dados de empresas francesas, concluiu-se que a investigação básica acaba por ter spillovers maiores na economia. A investigação “básica” é utilizada num maior número de indústrias, enquanto a investigação aplicada tende a ser de utilização demasiado restrita. O artigo, publicado numa prestigiada revista de economia por Ufuk Akcigit e co-autores, tem como conclusão principal algo ainda mais interessante: as empresas privadas tendem a sobrefinanciar a investigação aplicada nos seus próprios investimentos em I&D e a subfinanciar a investigação fundamental. O papel mais importante do Estado é, portanto, financiar ciência básica, corrigindo essa distorção do mercado, que já se foca excessivamente na ciência aplicada.. É esse o investimento mais inteligente, eficiente e gerador de bem-estar.
O investimento público em I&D em Portugal é muito inferior ao que seria desejável. O economista Arnaud Dyevre, num estudo recente e meticuloso, conclui que o investimento público em I&D, nos Estados Unidos, tem um impacto na produtividade duas a três vezes superior ao investimento privado. Mas o subfinanciamento público não é o único problema em Portugal. Os problemas sociológicos do meio universitário português e as suas normas formais e informais também impedem o desenvolvimento da nossa investigação científica. Mas esse tema merece a sua própria crónica.
Por agora, para além do subfinanciamento, noto apenas como Portugal está dependente, de forma crónica, excessiva e quase exclusiva, de fundos europeus para fazer estes investimentos. Esses fundos têm, muitas vezes, regras demasiado restritivas quanto ao que pode ser financiado — e não é suposto constituírem a totalidade do investimento em ciência. No entanto, os nossos impostos são utilizados para outras prioridades políticas. Por exemplo, em Setembro, os reformados portugueses irão receber um cheque extra entre 100-200 euros, sem qualquer justificação lógica, que nos vai custar 420 milhões de euros — mais de dois terços do orçamento anual da FCT.
observador