Autarca morreu apanhado pelo "vento que parecia o Diabo"

“Ti Amândio”, como é conhecido pelos vizinhos, conta que a política também esteve na origem de “um desentendimento” que teve com o antigo autarca nas últimas autárquicas. “O Dâmaso fez uma lista do Chega e eu nunca iria para o Chega. Eu era do PS há 50 e tal anos, desde o 25 de Abril.” Mas “Ti Amândio” desdramatiza o diferendo entre os dois: “Fomos sempre amigos, não fomos rivais“. E o episódio que ditou a morte do antigo autarca também é prova de que os diferendos políticos na freguesia não se interpunham no sentimento de solidariedade dos locais: Carlos Dâmaso foi dos primeiros a deslocar-se em direção à linha da frente do fogo para proteger o gado do candidato que o superou nas últimas eleições.
A rápida intervenção dos populares não impediu as chamas de se acercarem da povoação e o combate às ao fogo continuou pela noite dentro, até para lá das quatro da manhã. Já na manhã de sábado, “Ti Amândio” começou bem cedo a fazer um levantamento dos danos às suas propriedades. Arderam pelos menos quatro hectares de mato que lhe pertenciam e uma quantidade de lenha de castanheiro suficiente para encher uma dúzia de tratores, madeira essa que tinha cortado durante o inverno e guardava noutra propriedade.
“É uma tragédia. Nós temos grandes prejuízos em Vila Franca do Deão, mas o nome de uma pessoa não se paga. Deixou-se fugir a ajudar os amigos”, recorda desolado, assinalando que os populares “não tiveram o apoio de quase ninguém a não ser dos sapadores” do município da Guarda. “Só não ardemos nós, porque não calhou.”
Nas primeiras horas da manhã de sábado, antes de o calor abafado regressar, alguns residentes espalharam-se pelo território de Vila Franca de Deão para apurar os danos do incêndio do dia anterior. Uns montados em tratores, outros em motas, e ainda alguns a pé. “Até era para trazer o trator, mas o melhor que fiz foi vir a pé, para apreciar bem de perto“, diz ao Observador um aldeão que carregava uma enxada às costas enquanto subia uma longa estrada alcatroada, em direção à zona mais elevada da freguesia. Até estranha, quando é questionado se conhecia Carlos Dâmaso. “Aqui toda a gente se conhece, não é? É uma aldeia pequenina.”
Mais em cima, na continuação da estrada de alcatrão, outra habitante idosa faz as contas àquilo que o fogo levou. Prejuízos? “Não se sabe, ainda nem fui ver tudo. Ainda não fui àquele outro prédio, além”, diz, apontado para uma zona menos elevada do monte. Numa manhã em que toda aldeia ainda digeria a tragédia do dia anterior, Olímpia Boa era das poucas pessoas que, entre momentos de maior emoção, conseguia mostrar alguma boa disposição. “Isto é a terra das Boas”, disse, sorrindo, segurando uma foice com uma mão e com a outra carregada de tomates.
Olímpia revela depois que é mulher de um “grande amigo” de Carlos Dâmaso, com quem se ia candidatar novamente à junta, o “Ti Amândio: “Não era a minha vontade, porque ele já tem 81 anos”. E foi precisamente a idade avançada que levou a própria Olímpia não se aventurar no combate às chamas. “Já tenho 76 anos, não podia ter ido combater os incêndios”, diz, assinalando que não se lembra ter passado por ali um fogo que chegasse tão perto das casas. Sobre o incidente de sexta-feira, acrescenta ainda que é também avó do militar da GNR que conseguiu escapar às chamas. “O vento parecia o Diabo, Nosso Senhor me perdoe”, lembra, enquanto atira um olhar de aflição para o céu.
observador