A vida desgovernada (e pouco supreendente) de Charlie Sheen

A vida de Charlie Sheen, nas palavras do próprio, divide-se em três secções: “festa”, “festa com problemas” e “problemas”. E comecemos por estas palavras: não se percebe bem porque é que o realizador Andrew Renzi não aproveitou este mote para organizar a série documental Também Conhecido como Charlie Sheen, já disponível na Netflix. Em vez disso, o projeto divide-se em dois episódios, com cerca de hora e meia cada, cheios de caras conhecidas cujos testemunhos vão sendo intercalados com demasiadas cenas de filmes, inúmeros excertos de filmagens caseiras da família Sheen e entrevistas dadas pelo ator no início da carreira.
Sheen é, obviamente, o interveniente principal e fala sem filtros, sentado no canto de um sofá de um diner (o homem gosta, porque não?). Ou, pelo menos, é o que promete no início. “Vou revelar coisas que jurei que só revelaria a um terapeuta.”
Após sete anos de sobriedade, a estrela de Hollywood parece já ter tido mais vidas do que um gato, tendo estado perto da morte um par de vezes — e outras tantas dado como morto pela imprensa. Fala com a clareza e o discernimento que talvez nunca lhe tenhamos reconhecido antes, mas à medida que o tempo vai avançando também parece que nada do que diz é por acaso, que não há propriamente remorsos e talvez também não haja real perceção dos danos que possa ter causado às pessoas que o foram rodeando. Embora o refira várias vezes, também verbaliza que sempre se safou de situações que o deviam ter levado a pagar consequências reais. Também não é aqui que lhe pedem satisfações, já que há muita coisa que fica à superfície, como o tiro supostamente acidental sofrido pela atriz Kelly Preston, namorada do ator nessa fase.
Depois dos três separadores da vida do ator despachados (já lá iremos), o realizador esvazia o diner onde o ator está a ser entrevistado e diz-lhe: “Agora vamos falar das coisas de que nunca falaste publicamente”.
[o trailer de “Também Conhecido Como Charlie Sheen”:]
Muito bem, restam 20 minutos de documentário, o que poderá vir dali? Nada de surpreendente, na verdade. Fala-se da acusação de violação de Corey Haim, nas filmagens de Lucas. Charlie Sheen nega. Fala-se das mulheres que o processaram por alegadamente terem sido expostas ao vírus do HIV quando o ator já tinha sido diagnosticado [revelou-o numa entrevista em 2015 após andar anos a ser chantageado por mulheres com quem se envolvia sexualmente]. Charlie Sheen nega. Fim. Ou pré-fim, digamos. Segue-se uma demorada analogia sobre o menu de um restaurante que nos deixa demasiado tempo a decifrar de que raio estará ele a falar. Tem de ser o realizador Andrew Renzi a dizer as palavras: “Esta é a primeira vez que fala publicamente de ter relações sexuais com homens”.
Parece não querer fazer grande caso disso, nem sequer é Sheen que o diz diretamente, apenas admitindo que é “libertador” falar sobre o assunto. Talvez fosse algo que o ator quisesse realmente tornar público — ou por não querer esconder ou com receio de ser exposto ou por estar a ser novamente chantageado —, mas será assim tão surpreendente para o espectador (ou relevante?) perceber que um homem que experimentou tudo em doses astronómicas (ecstasy, cocaína, crack, álcool) tenha sido sexo com homens? Essa é, certamente, a parte mais inofensiva da vida de Charlie Sheen.
observador