Portugal deve valorizar trunfo das Lajes

Situa-se no século XV a documentação que indica a descoberta e o consequente povoamento das ilhas dos Açores, no coração do Oceano Atlântico.
«A geografia, para nós [açorianos], vale outro tanto como a história», escreveu Vitorino Nemésio, demonstrando assim o principal activo dos Açores.
As forças da natureza que conduziram as caravelas quinhentistas fizeram das ilhas um sustentáculo das rotas marítimas. A escala açoriana foi essencial para o reabastecimento de frotas, para a reparação de embarcações e para a segurança da Armada. Com a concorrência nórdica, as frotas lusa e castelhana perderam o predomínio das descobertas ultramarinas e, a partir do século XVII, outras nações começam a olhar para as ilhas açorianas como de relevante importância estratégica. Os britânicos chegaram a sugerir a transformação do arquipélago num protectorado inglês. Mesmo com o declínio das frotas ibéricas, os Açores mantiveram um papel essencial no domínio pelo Atlântico que ninguém podia ignorar. Isto tornou-se ainda mais evidente a partir do século XX, com a emergência dos Estados Unidos da América (EUA) como grande potência aérea e naval, substituindo-se de algum modo ao império britânico.
É, pois, inquestionável o valor estratégico e a relevância euro-atlântica do arquipélago, colocando-se na vanguarda da observação meteorológica, e da investigação oceanográfica, espacial e biotecnológica, além de outras vantagens de ordem científica.
Os acontecimentos político-militares das últimas semanas voltam a colocar os Açores nas bocas do mundo, devido à passagem e estacionamento de contingentes da aeronáutica norte-americana (e de outros países da NATO) na Base das Lajes. Apesar de toda a imprevisibilidade da actual administração Trump, é praticamente nula a probabilidade de os EUA perderem o interesse no acesso estratégico e agilizado à base instalada na ilha Terceira. A necessidade americana de contar com bases militares no exterior do seu território, para dar resposta pronta a uma crise ou conflito regional é imperiosa, no seu enquadramento defensivo no âmbito da NATO. Aliás, mesmo depois da Guerra Fria, vários foram os exemplos em que as Lajes assumiram importância na acção norte-americana: na primeira Guerra do Golfo, em 1991; na ex-Jugoslávia durante os anos 90; no Afeganistão no final de 2001; durante o conflito no Iraque [após a Cimeira das Lajes em 2003]; e, mais recentemente, na Líbia, na Síria ou no Iémen.
O «poder funcional» de Portugal (os Açores) continua a justificar o interesse dos EUA. Claro que, no âmbito da política europeia de segurança e defesa, importará perceber que novos papéis poderão desempenhar as ilhas atlânticas portuguesas no quadro das facilidades concedidas: Será o arquipélago perspectivado como a defesa avançada dos EUA (como tem sido até agora) ou da Europa?
Neste enquadramento importa perceber que os EUA se sentem donos desta infraestrutura militar onde dispõem de facilidades. Mas a base das Lajes é da Força Aérea Portuguesa (BA4), onde coabita um singelo destacamento de tropas norte-americanas.
Na década de 60, o Governo português revelou-se hábil negociador. Conhecendo a importância da base militar terceirense para a política externa norte-americana, usou de todas as boas práticas diplomáticas para fazer vingar o interesse nacional. Daí para cá, os EUA não mais cederam e as convulsões políticas internas, a viragem de Portugal para a Europa e a nossa falta de capacidade para avaliar a verdadeira importância estratégica do território insular, mostraram a incapacidade dos negociadores lusos, ao ponto de, 30 anos depois da assinatura do último acordo bilateral (1995), não mais se ter manifestado qualquer vontade em rever o documento. Um pequeno Estado como Portugal, já com a democracia estabilizada, necessita de negociadores hábeis, para melhor defender os seus interesses e potenciar a sua relevância geoestratégica. Sabendo que os Açores serão sempre, fruto da sua localização geográfica, uma relevante placa giratória.
Do ponto de vista de Portugal e dos nossos parceiros da União Europeia, projectos como o alargamento da plataforma continental, a manutenção de uma política externa euro-atlântica, as relações diplomáticas com os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa e com o Brasil e o incremento de parcerias para o desenvolvimento, farão sempre dos Açores um ponto central. Permitindo uma porta aberta para que Portugal se assuma como elo das relações diplomáticas entre a União Europeia e os EUA, mas também entre o norte e o sul atlânticos.
Mas nem tudo está bem. Sendo estável o alicerce triangular da política externa portuguesa – Atlântico, Lusofonia e Europa – a visão que os governos, da República e Regional (não) têm sobre as potencialidades estratégicas das ilhas é incerta. Se, nos primórdios do regime autonómico, a envolvência pioneira dos legítimos representantes do povo açoriano nas delegações lusas encarregues das negociações bilaterais (com França, por causa da base na ilha das Flores, e com os EUA, por causa das facilidades concedidas na Terceira) ainda suscitaram o desenvolvimento de trabalhos ao nível de uma Comissão Parlamentar de Assuntos Internacionais da Assembleia Legislativa Regional, actualmente (e com particular incidência a partir da revisão do acordo das Lajes em 1995) o pouco que se tem vindo a verificar na hierarquia das prioridades políticas regionais são departamentos governamentais dedicados a assuntos de emigração e imigração (comunidades/diáspora) e de assuntos europeus.
É certo que, no quadro constitucional vigente, compete aos representantes do Estado o desenvolvimento diplomático no âmbito das relações internacionais, mas a própria Região Autónoma não pode abdicar de intervenção neste processo. A existência da base das Lajes permite aos responsáveis políticos regionais reclamar para os Açores um lugar central nas relações transatlânticas. No entanto, praticamente volvidos 50 anos da instauração do regime autonómico, o que se assiste é a um cada vez menor (se não mesmo preocupantemente inexistente) pensamento estratégico sobre este tema.
Os Açores podem assumir um papel decisivo na recolha de informações nos mais diversificados domínios: a meteorologia, investigação espacial, segurança marítima, controlo de tráfegos aéreo e marítimo, combate à pirataria e tráficos, segurança de controlo de infraestruturas críticas de informação (como os cabos submarinos), recolha de informação científica e biotecnologia, entre outras.
Todas estas funções estratégicas resultam de algo que antecede custos orçamentais, não implicando grande esforço: falamos da geografia, da vontade política e do desenvolvimento tecnológico. O País e a Região só poderão tirar deles proveitos se definirem com clareza quais são os seus trunfos, ambições e interesses. Caso contrário, Portugal continuará sem potenciar um seu activo extraordinário, deixando estas ilhas apenas interessantes para potências externas.
Um velho adágio da sabedoria popular reza que «quem vai para o mar, avia-se em terra», aplicando-se integralmente tal empirismo ao quadro das negociações diplomáticas e das relações internacionais. Importa que antes de serem tomadas, por outros Estados, quaisquer decisões impactantes na política internacional, saibamos fazer valer as nossas mais-valias e trunfos.
Num momento em que está formalmente tomada a decisão dos estados-membro da NATO elevarem os orçamentos de Defesa para 5% do PIB, está na hora de Portugal assumir as suas responsabilidades e aproveitar os seus activos. Se este esforço advém de exigências de um aliado, os EUA, saibamos vingar o princípio da reciprocidade e ser igualmente exigentes.
Não estando as Lajes sob gestão própria e havendo na prática uma cedência do exercício da soberania a este aliado, isto deve ser devidamente valorizado. Os EUA não largam as Lajes, mas têm desinvestido financeira e operacionalmente na Base. Portugal não pode continuar a fingir que ignora isto. É o momento de sermos exigentes e valorizarmos este importante activo geoestratégico.
Mas para isso é preciso ter uma visão e saber o que se pretende.
A política externa portuguesa não pode esgotar-se na tentativa de alcançar lugares em instituições multilaterais. Na colocação de activos humanos, Portugal tem sido exímio. Mas isto não basta. Saibamos finalmente alavancar os nossos activos territoriais, os nossos activos de soberania. Trazem-nos segurança, mas também devem trazer desenvolvimento e crescimento.
observador