Os tuk-tuks e a tragédia lisboeta

Lisboa, outrora cidade de sete colinas, mártires e miradouros, é hoje uma feira permanente de trambolhos, ora motorizados, ora eléctricos, aos guinchos, cuspindo decibéis e dióxido pelas ruelas de Alfama como se a capital tivesse sido transformada num parque temático para turistas com défice de atenção e excesso de selfie stick.
É verão, claro. É tempo do calor, dos Santos Populares, da sardinha aquecida ao preço do ouro e, já agora, como se fosse uma inevitabilidade bíblica, da invasão anual dos tuk-tuks. O que começou como uma “curiosa” novidade asiática, transformou-se numa praga urbana, estilo gafanhoto tropical, só que com buzina e guia improvisado.
Porque nada diz “experiência cultural autêntica” como subir a Calçada do Combro num triciclo barulhento conduzido por um jovem chamado Rajesh, acabado de aterrar de Punjab, que diz com um sorriso: — “This is the castle, very old, very nice, much history!”
Ah, sim…“Much history.”Claro que é! Mas afinal, quem é que precisa de contexto histórico quando pode ter um altifalante a debitar “Despacito” a poluir a paz de quem só queria tomar um café na Bica sem ser atropelado por uma geringonça que parece ter fugido de uma feira medieval indiana?
O turista só quer sentir-se local, sentir o famoso “fado real” e tirar uma fotografia “autêntica” numa tradicional e maravilhosa vista. Só que fá-lo dentro de um tuk-tuk decorado com fitinhas de plástico e guiado por alguém que pensa que o Marquês de Pombal foi um tipo importante na construção de Barcelona.
Os lisboetas assistem a isto entre a perplexidade e a resignação. Há quem fuja, quem insulte, quem tente atravessar a rua entre dois tuk-tuks e acabe por ser apitado como se tivesse cometido crime de lesa-turismo. A cidade já não é nossa, é do turismo motorizado, da geolocalização mal feita, e dos fones de ouvido com “áudio-guia” em castelhano mal traduzido.
Caracterizam-nos os eléctricos de verdade, com cheiro a madeira e nostalgia, e não estas traquitanas de plástico com motor de cortador de relva. Lisboa não morre, mas sofre. E entre um tuk-tuk e outro, lá vai suspirando, como uma senhora elegante obrigada a servir minis a ingleses de chinelo na mão.
Pobre cidade nossa. Vê o que fizeram contigo.
E o mais trágico, o que verdadeiramente nos faz questionar a própria ideia de destino, com fado e sina incluídos, é que há quem abrace esta modernidade e lhe chame pomposamente de “mobilidade sustentável”. Dizem com ar iluminado, como se uma cidade pudesse manter alguma dignidade com centenas de micro-alfândegas ambulantes a entupir as ruas mais estreitas que a vergonha dos que as aprovaram.
Mas o que nos deveria ferir o orgulho nacional é ver turistas de pele escaldada a tirar selfies, todos contentes, à frente do Panteão, enquanto o condutor do tuk-tuk lhes explica que ali é onde os reis estão “guardados como múmias”. Emocionando casais como se estivessem perante o túmulo de Tutankamon em pleno Jardim Botto Machado.
Mas a culpa não é só dos condutores, que na precariedade e, sem falar português, são lançados no caos lisboeta com um mapa desactualizado e um inglês de aeroporto. A culpa é também da autarquia, sempre lesta a permitir mais ruído, mais confusão, mais “experiência diferenciadora”, desde que venha com um logotipo e um estudo de impacto ambiental suficientemente vago.
Mas e nós? Nós assistimos, impotentes. Condenados à condição de figurantes numa cidade que já não nos pertence. Somos extras, pagos em olhares de desprezo, enquanto os tuk-tuks passam com as suas sombrinhas coloridas, os seus bancos cobertos de napa sintética e os seus passageiros com camisolas da Selecção e ar de quem descobriu a cultura europeia numa manhã de terça-feira.
Lisboa, minha querida, tu foste rainha. Foste palco de impérios, de revoluções, de poetas e marinheiros. E agora és cenário de TikTok, soundtrack de Funk, e ringue de colisões entre tuk-tuks e trotinetes de aluguer.
O que virá depois? Gôndolas na Baixa? Safari urbano na Mouraria com carrinhos de golfe? Já só falta uma conhecida cadeia de fast food no interior do Mosteiro dos Jerónimos e está tudo pronto para a canonização da decadência.
Enquanto escrevia este texto, certamente tuk-tuks apitaram. E, com apenas vinte euros por uma volta de vinte minutos alguém aprenderá, com absoluta certeza, que Fernando Pessoa foi um famoso chef de pastéis de nata.
observador