O fascinante Mundo Antigo de Zbigniew Herbert

Há pouca coisa que expire mais depressa do que literatura histórica em segunda mão. A descoberta conserva nos livros uma vitalidade quase invencível: pouco importa a confusão do seu estilo ou os apartes biográficos de Schliemann; vê-lo a entrar pela terra adentro enquanto nos embrenhamos pelo seu livro adentro, até encontrar Tróia e ver confirmada a sua fé em Homero é uma experiência extraordinária. Ler a multidão de intérpretes que se lhe seguem, porém, é como tentar curar uma dor de dentes num consultório oitocentista. Tudo pode ser pinturesco, se estivermos com boa disposição, mas nada parece útil.
As interpretações obedecem a ciências obsoletas, os factos estão refutados ou incompletos, as novidades já são lugares-comuns, pelo que é raro o ensaio histórico que sobrevive à própria história. Mais raro ainda é assistir a um poeta que, diante da história, resiste a arredondá-la com uma retórica mais ou menos escondida. Vemos isso em tantos dos maiores escritores da língua: nunca as figuras históricas de Agustina resistiram à sua perversão romanesca, o Camões de Garrett é um imenso floreado que camufla o próprio poeta e em caso nenhum, dos muitos estudos históricos de Camilo, o rigor se sobrepõe a uma boa frase. Tudo isto é compreensível: não são livros didáticos, o que há para aprender, neles, é de outra ordem.
Isso, contudo, torna este livro póstumo de Zbigniew Herbert, o grande poeta polaco da segunda metade do século XX que escreve aqui sete ensaios sobre o Mundo Antigo, de Cnossos à Etrúria, uma estimável preciosidade. Não é preciso carregá-lo com elogios desajustados do tom em que o livro foi impresso. É um livro ameno, que dá um prazer calmo e discreto, mas ainda assim pouco comum. Isto porque é um livro de ensaios – alguns deles na fronteira entre o ensaio e o relato de viagem, como na pormenorizada descrição do Museu de Heraclião ou na sua tentativa de descrição da paisagem grega – sobre assuntos que Herbert conhece bem (em segunda mão, sim, mas bem, com aquele à-vontade próprio do contacto prolongado com os assuntos) a ponto de nunca deixar de ser informativo, mas em que nunca se perde também uma vivacidade que é mais própria do artista do que do historiador.

O grande mistério aqui passa por perceber como é que o livro de Herbert não vai desmaiando na monotonia dos factos repetidos e consegue manter uma vivacidade tão incomum neste tipo de ensaios, que não têm nem grandes descobertas, nem grandes pretensões ideológicas. E isto tem que ver, sobretudo, com o olhar estilístico de Herbert. O modo de Herbert olhar para as coisas é essencialmente original, mas de uma feição muito discreta. Isto é, diante da paisagem grega, aquilo que ele convoca imediatamente não é o que a associa ao mundo helénico, mas o que a dissocia dele. Pouco lhe interessa aquele movimento habitual do intelecto que passa por criar relações entre as coisas e que acaba por tornar tantos dos livros de história reproduções do mundo em que foram escritos. O olhar de Herbert é mais dissociativo do que associativo, o que traz as suas observações constantemente para longe do terreno de partida.
Ao mesmo tempo, porém, há um esteio tácito no livro que lhe dá uma segunda camada de encanto, que não tem tanto que ver nem com as peripécias da invasão por Péricles da ilha de Samos, nem com as maravilhas escondidas da arte Etrusca; este livro, mais do que uma recolha de ensaios de um grande erudito, é o registo do embate de um homem com uma civilização de que ouve falar desde a infância. Isso revela-se num ensaio central do livro, em que Herbert conta a reação de Freud ao deparar pela primeira vez com a acrópole. A Herbert interessa-lhe, para lá da arte e da história sobre a qual já leu, perceber a reação dos sentidos ao encontrarem aquilo que há tanto tempo conhecem de outra maneira. Daí que ligue tanto ao que o próprio Freud escreveu – em que acaba a meditar sobre a desconfiança dos seus próprios sentidos em relação àquilo de que nunca tinham duvidado – e que junte a estes ensaios uma “aula de latim” com lembranças sobre o seu professor da infância e o modo como se foi formando nele a consciência da civilização.
Estes ensaios são importantes porque explicitam um lado importante do livro: há nele um entusiasmo ainda juvenil, um entusiasmo que se revela também quando, a par com as descrições dos lugares arqueológicos chave das civilizações micénica e minóica, traz os retratos de Arthur Evans e da sua equipa, uma verdadeira plêiade de exploradores vitorianos, daqueles que alimentam a imaginação da juventude.
Não deixa de ser, também, extraordinário perceber o contacto íntimo que, em tempos, a educação escolar julgou ser seu dever proporcionar entre os jovens estudantes e o princípio da civilização ocidental. É por essa preocupação ter estado em tempos presente que o livro de Herbert soa também, tantas vezes, a um encontro com a sua própria juventude, como um velho que recupera o seu vigor ao descobrir, enterrados no jardim, os velhos brinquedos da sua infância. Talvez já não fosse possível, hoje, surgir um livro assim. Não porque faltem eruditos capazes de saber mais sobre Atenas, Roma, os governos Romanos da Grã-Bretanha ou sobre o modo como se drenou a cloaca maxima para criar o fórum de Roma; simplesmente porque para mais ninguém isto estará gravado na memória junto aos temores de um professor rígido ou às descobertas do companheirismo, na infância, o tempo em que a civilização se torna a própria vida.
observador