Ferrovia- que ninguém fuja à responsabilidade

Durante a assinatura do contracto de concessão para a construção e manutenção por 30 anos do troço Porto-Olã da linha ferroviária de alta velocidade, o ministro das Infraestruturas e Habitação Miguel Pinto Luz deixou a pérola seguinte: “As linhas de Alta Velocidade são, a par do novo aeroporto de Lisboa, as maiores obras que o país levará a cabo neste século, e são fatores críticos para o crescimento económico de Portugal. São projetos que envolvem um largo consenso nacional. É por isso decisivo que sobre a alta velocidade e, no geral, sobre a importância do investimento na ferrovia, haja uma atitude determinada deste Governo e que está alinhada com o Parlamento e a vontade dos Portugueses. Este é para mim um grande sinal de maturidade democrática.”
Nestas poucas palavras o ministro faltou descaradamente à verdade e omitiu o essencial sobre a inexistência de um verdadeiro debate nacional sobre um sistema ferroviário que sirva a economia portuguesa, seja porque a escolha governamental da bitola ibérica impede as ligações internacionais, determinantes para os sectores exportadores e para as viagens dos portugueses na Europa, seja porque desperdiça o financiamento disponível da União Europeia, fortemente usado pela Espanha e pelos países da Europa de Leste e contribui para o desnecessário endividando do Estado a pagar pelos portugueses durante os próximos trinta anos. Acresce que no seu delírio verbal, o ministro não hesitou em eliminar todos os possíveis investimentos futuros de outros governos até ao final do século. Pura megalomania que revela uma continuada fuga do ministro à realidade.
Mas vejamos com mais pormenor algumas das inverdades e omissões do ministro:
1. É falso que haja um consenso nacional sobre a ferrovia em bitola ibérica e é falso que a Assembleia da República tenha aprovado, ou sequer debatido, os planos do ministro de uma ferrovia em bitola ibérica. Os debates públicos já realizados foram rigorosamente controlados pelos dirigentes da empresa IP, em que só falam os crentes escolhidos e com a exclusão de intervenções externas, como aconteceu recentemente ao Professor Mário Lopes do IST, a quem foi cortada a palavra por falta de tempo num debate realizado no Tagus Parque de Oeiras. Além disso, várias associações empresariais, como a CIP e a AFIA, estão há muito contra uma ferrovia caseira que torna as exportações portuguesas para a Europa reféns do transporte rodoviário, ou da ferrovia espanhola. Muitos outros sectores da sociedade portuguesa têm apresentado estudos, escrito textos e reclamado em Bruxelas e junto do governo. Eu próprio e outros cidadãos assinámos um Manifesto sobre o assunto que apresentámos ao Presidente da República e ao governo de então. Além de que, porventura mais importante, não existe nenhum consenso com a União Europeia, autora do Corredor Atlântico, destinado a Portugal e a Espanha, com fortes apoios financeiros. União Europeia que ainda recentemente recusou um pedido do governo de financiamento de cerca de 950 milhões destinado à ferrovia.
2. É aliás óbvio que não pode existir consenso em matéria cujos pontos essenciais são desconhecidos, segredo ou omissões mantidas pelo ministro. Exemplos: (a) tendo a Espanha construído um sistema ferroviário, nomeadamente de alta velocidade, em bitola europeia, destinado a passageiros e mercadorias, como podem os comboios portugueses chegar à Europa em bitola ibérica?; (b) qual o acordo que existe com a Espanha sobre as ligações a Portugal, quais os pontos de ligação e qual a bitola usada; (c) Como pode a ferrovia promover o desenvolvimento económico sob o controlo do Estado e sem existir concorrência?; (d) quais as empresas internacionais que investirão em comboios de bitola ibérica para servir o pequeno mercado português de apenas dez milhões de consumidores?; (e) como pensa o governo enfrentar a previsível perda de competitividade do transporte rodoviário, dados os condicionamentos ambientais e energéticos impostos pela União Europeia e pelos outros países europeus com sistemas ferroviários que cumprem as regras europeias?; (g) como pensa o governo participar no futuro transporte do mercadorias para longas distâncias, através de camiões transportados em plataformas ferroviárias, no que constitui o futuro do transporte de mercadorias na Europa?; (h) tem o ministro a aprovação do Tribunal de Contas? (i) Vai Portugal ficar de fora do sistema de defesa militar da Europa?
Infelizmente, o ministro não responde a nada do que lhe é perguntado, seja porque não quer, seja porque não sabe. Outros exemplos: (j) como explica o ministro a dependência dos portugueses do transporte aéreo de passageiros nas ligações internacionais de médio curso, quando outros países já usam a ferrovia de alta velocidade? (k) qual a razão de utilizar na linha do Porto a Lisboa pendentes que inviabilizam o transporte económico de mercadorias e qual a razão de recusar o modelo misto, passageiros e mercadorias, como agora já é usado em Espanha? (l) porque recusa o ministro o financiamento europeu, apenas para ter a bitola ibérica? (m) ou quais são as razões políticas, económicas, sociais, ou legais para a escolha da bitola ibérica? Faço notar que o governo da AD ainda não respondeu a algumas destas perguntas colocadas pela União Europeia.
Segundo os especialistas, o custo da alta velocidade será de cerca de dois mil milhões de euros por cada cem quilómetros e, assim sendo, o custo da linha AV Porto Lisboa será superior a 6 mil milhões de euros a pagar por todos nós, porque o governo recusa o financiamento europeu. Ou seja, o que pode levar um governo e um ministro a recusar um modelo de financiamento da União Europeia que permitiu à Espanha possuir um dos mais modernos sistemas ferroviários do mundo, onde a concorrência entre empresas nacionais e internacionais tem permitido uma elevada qualidade do serviço e a preços reduzidos. Ou, finalmente, quais são as empresas que irão explorar o novo sistema de alta velocidade? A CP e mais quem? E qual a sua participação no projecto?
Chamo ainda a atenção de que diferentemente do que aconteceu com o aeroporto de Lisboa, onde foi feito um estudo tornado público, o ministro Pinto Luz está a avançar com a ferrovia em bitola ibérica sem nenhum estudo comparativo entre as vantagens e os inconvenientes de cada solução. Para mais, sem antes explicar as causas e os custos adicionais dos enormes atrasos de três anos em todas as outras obras ferroviárias em curso sob a orientação da empresa IP, como a linha do Poceirão ao Caia, da Beira Alta e do Oeste. Além do Metro Circular de Lisboa. Ou seja, nenhuma das obras que o ministro tem em mãos cumpre os mínimos de prazo e de preço, ou seja, como pode ele convencer os portugueses que tem as condições para decidir e dirigir aquilo a que chamou as maiores obras do século em Portugal, com semelhante currículo? Ou, já agora, como pode um primeiro-ministro correr o risco da opção pela bitola ibérica sob a direcção do actual ministro? Espera que uma mera demissão possa resolver o problema?
O que está em causa nos enormes investimentos previstos para a ferrovia de alta velocidade em bitola ibérica, é um erro político de enormes dimensões, o qual responsabilizará no futuro o governo, o Presidente da República, os partidos políticos, as universidades portuguesas, as ordens dos Engenheiros e dos Economistas e o Tribunal de Contas. Espero que não se repita o caso Marquês em que não deram por nada, espero que desta vez não possam dizer que não estiveram cá e não viram.
Notas: uma pequena história: nos tempos do professor Cavaco Silva, foi debatida a modernização da Linha do Norte, tendo o ministro Oliveira Martins feito um relatório que sustentava não ser aconselhável uma modernização que implicaria diferentes tecnologias e com o sistema em funcionamento, tendo proposto a construção de uma nova linha. Seguiu-se o ministro Ferreira do Amaral, que se decidiu pela modernização, com o resultado de terem sido realizados investimentos de vários milhares de milhões de euros e no final se ter obtido uma redução de dez minutos no tempo de viagem. Agora, trinta anos depois, foi decidida a construção de uma nova linha, tal como proposto pelo Engenheiro Oliveira Martins que, estou certo, se estivesse entre nós recusaria a bitola ibérica e pelas mesmas razões.
observador