Eça de Queiroz … e umas tesouras!

No passado dia 16, cumpriram-se 125 anos sobre a morte precoce de José Maria Eça de Queiroz, pois tinha apenas 54 anos. Graças a esta efeméride, vem a propósito recordar, in memoriam, uma sua divertida carta ao director da Companhia das Águas de Lisboa.
Queixa-se Eça de Queiroz do incumprimento, por parte da Companhia, da sua contratual obrigação de fornecer ao escritor, bem como à sua família, o precioso líquido, não obstante o seu escrupuloso cumprimento das obrigações contratuais. A reclamação por uma razão tão prosaica estava condenada à irrelevância própria do que é banal, mas Eça de Queiroz aproveitou a ocasião para manifestar, num texto hilariante, a sua imensa imaginação e não menos exuberante ironia, em que não falta alguma picardia, que os mais escrupulosos, ou sensíveis, farão o favor de desculpar.
Importa recordar que José Maria Eça de Queiroz, inquilino recente do Panteão Nacional, não só era bacharel em Direito pela Universidade de Coimbra, a única onde então se ministrava esse curso, mas também filho e neto de ilustres juristas. Contudo, não obstante a sua formação jurídica, incorre no erro de apelar à justiça distributiva – que rege a relação entre o Estado e os cidadãos, premiando méritos e sancionando faltas – quando, pelo contrário, o incumprido contrato se insere no âmbito da justiça comutativa, própria das relações jurídicas estabelecidas entre iguais. Mesmo tratando-se, por um lado, de uma entidade colectiva, como é a Companhia das Águas, e pelo outro, um simples particular, são duas pessoas dotadas de personalidade jurídica que estabelecem entre si um contrato na base da equivalência das respectivas prestações. Ou seja, ao serviço prestado pela Companhia há-de corresponder o pagamento a efectuar pelo beneficiário, cujo incumprimento acarretará, como é óbvio, a cessação do serviço e do subministro da água da Companhia.
Se Eça de Queiroz dispensa apresentações, o mesmo não se pode dizer do destinatário da sua carta, Carlos Pinto Coelho, na sua qualidade de director da Companhia das Águas de Lisboa.
Carlos Zeferino de Carvalho Pinto Coelho de Castro, de seu nome completo, nasceu em Beja a 26-8-1819 e faleceu em Lisboa a 24-2-1893, sendo filho de Francisco de Castro Pinto Coelho de Magalhães e de sua mulher D. Maria Teresa Rodrigues de Carvalho. Casou primeiro, a 26-8-1849, com D. Rosalina Angélica de Sá Viana, de quem teve sete filhos; e passou, a 1-1-1873, a segundas núpcias, com D. Maria do Rosário de Carvalho, de quem não teve geração. Não obstante a homonomia, o director da Companhia das Águas não pertencia à família do Professor Doutor José Gabriel Pinto Coelho, Procurador e Presidente da Câmara Corporativa, Catedrático da Faculdade de Direito, Vice-Reitor e Reitor da Universidade de Lisboa, etc., que teve abundante e ilustre geração.
O referido Carlos Pinto Coelho também era, como Eça de Queiroz, bacharel em Direito pela Universidade de Coimbra, tendo-se destacado como insigne tribuno – foi deputado de 1857 a 1866 – e jurisconsulto. Foi juiz desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa e fundou, em 1855, a Companhia das Águas, de que foi presidente.
Foi ainda membro destacado do Partido Legitimista, a que presidiu, tendo sido também colaborador assíduo de A Nação, o jornal afecto aos partidários do exilado Rei, que o foi de jure e de facto, D. Miguel I. Professando uma tal ideologia política, simpatizava com o carlismo que, em Espanha, defendia os mesmos princípios absolutistas.
Como é sabido, em Portugal, com a morte sem geração de el-Rei D. Manuel II, extinguiu-se o ramo primogénito da família de Bragança. Por este motivo, depois de revogada a lei do banimento, veio a suceder na chefia da Casa Real o representante do ramo miguelista, o actual Duque de Bragança que, por linha materna, também descende de D. Pedro IV. Curiosamente, em Espanha aconteceu o contrário: devido à extinção do ramo carlista, a sua representação reverteu para a linha primogénita e, por isso, o monarca emérito se chama Juan, como seu pai, e Carlos, porque nele recaiu a chefia do ramo carlista.
A militância legitimista do director da Companhia das Águas explica a relação que o escritor estabelece, não sem divertida ironia, entre a sua falta de água e o avanço dos carlistas em Espanha.
Sem mais preâmbulos e em homenagem ao seu genial autor, aqui se transcreve, integralmente, a dita carta:
“Ilmo. e Exmo. Senhor Pinto Coelho,
digno director da Companhia das Águas de Lisboa
e digno membro do Partido Legitimista.
Dois factores igualmente importantes para mim me levam a dirigir a V. Ex.ª estas humildes regras [sic]: o primeiro a tomada de Cuenca e as últimas vitórias das forças carlistas sobre as tropas republicanas, em Espanha; o segundo é a falta de água na minha cozinha e no meu quarto de banho. Abundaram os carlistas e escassearam as águas, eis uma coincidência histórica que deve comover duplamente uma alma sobre a qual pesa, como na de V. Ex.ª, a responsabilidade da canalização e a do direito divino.
Se eu tiver a fortuna de exacerbar até às lágrimas a justa comoção de V. Ex.ª, que eu interponha o meu contador, Exmo. Senhor, que eu o interponha nas relações da sensibilidade de V. Ex.ª com o mundo externo! E que essas lágrimas benditas, de industrial e de político, caiam na minha banheira! E, pago este tributo aos nossos afectos, falemos um pouco, se V. Ex.ª o permite, dos nossos contratos.
Em virtude de um escrito, devidamente firmado por V. Ex.ª e por mim, temos nós – um para com o outro – certo número de direitos e encargos. Eu obriguei-me para com V. Ex.ª a pagar a despesa de uma encanação, o aluguer de um contador e o preço da água que consumisse. V. Ex.ª, pela sua parte, obrigou-se para comigo a fornecer-me a água do meu consumo. V. Ex.ª forneceria, eu pagava. Faltamos evidentemente à fé deste contrato: eu, se não pagar, V. Ex.ª, se não fornecer. Se eu não pagar, V. Ex.ª faz isto: corta-me a canalização. Quando V. Ex.ª não fornecer, o que hei-de eu de fazer, Exmo. Senhor? É evidente que, para que o nosso contrato não seja inteiramente leonino, eu preciso no caso análogo àquele em que V. Ex.ª me cortaria a mim a canalização, de cortar alguma coisa a V.Ex.ª… Oh! E hei-de cortar-lha!… Eu não peço indemnização pela perda que estou sofrendo, eu não peço contas eu não peço explicações, eu chego a nem sequer pedir água! Não quero pôr a Companhia em dificuldades, não quero causar-lhe desgostos, nem prejuízos! Quero apenas esta pequena desafronta, bem simples e bem razoável perante o direito e a justiça distributiva: quero cortar uma coisa a V. Ex.ª! Rogo-lhe, Exmo. Senhor, a especial fineza de me dizer imediatamente, peremptoriamente, sem evasivas, nem tergiversações, qual é a coisa que, no mais santo uso do meu pleno direito, eu posso cortar a V. Ex.ª.
Tenho a honra de ser, De V. Ex.ª com muita consideração e com umas tesouras, Eça de Queiroz.”
observador