Bem-vindo ao SNS: o clube exclusivo onde paga para não entra

Esta é a crónica de um serviço de saúde que está a transformar o direito à saúde numa roleta russa de portas fechadas.
Mesmo defendendo, de forma acérrima, o SNS, pela qualidade, excelência e dedicação dos seus profissionais, não se pode deixar de constatar, com enorme frustração, que se instalou dentro do setor, um novo desporto de aventura em Portugal. Infelizmente, já é praticado por muitos e não exige equipamento especial: apenas uma serena dose de paciência, disponibilidade para longos minutos de espera na linha do SNS24, vontade de percorrer centenas de quilómetros e um otimismo na boa gestão do SNS à prova de bala.
O jogo poder-se-ia chamar “Adivinhe o Serviço do SNS que Funciona Hoje”.
As modalidades são variadas: desde a “Urgência Pediátrica Surpresa”, ao “Parto Itinerante” e, claro, a categoria clássica e mais desafiante para verdadeiros elite players: “Encontre um Dentista no Centro de Saúde”. E é para e nessa categoria que se pretende chamar a vossa atenção.
Consta a lenda, velada em promessas eleitorais, sussurrada em parcas inaugurações e, por vezes, até partilhada em fóruns online, como um segredo arcano, que existem umas raras e daí tão míticas criaturas no SNS: Os Médicos Dentistas.
Tal como os Unicórnios, o acesso ao médico dentista no SNS revela-se na tal figura lendária que povoa o imaginário dos portugueses, mais rara ainda que identificar um político a cumprir todas as promessas eleitorais, numa esperançosa promessa de alívio para as patologias dolorosas que lhes afligem a boca e a carteira. Contudo, esse vislumbre é uma comédia de contornos trágicos. Encontrar um destes profissionais no serviço público é uma tarefa tão hercúlea que assenta em três lusitanos pilares essenciais: a fé, a paciência e, claro, a burocracia.
A premissa deveria ser simples: quando um cidadão, que, religiosamente, paga os seus impostos, é acometido por uma maleita, o seu primeiro impulso deveria ser procurar ajuda naquilo que julga ser seu por direito: um tal de SNS.
Ledo engano.
A realidade, crua, expõe-se nos números. Segundo o mais recente barómetro da Ordem dos Médicos Dentistas, 66% dos inquiridos nem sequer sabe que existem cuidados de saúde oral no SNS. E, ironicamente, os que afirmam saber são menos do que em 2022 — talvez por desconfiarem que possa tratar-se de uma fake news.
A desconfiança tem fundamento. Em setembro de 2024, o jornal Público denunciava a existência de 32 gabinetes dentários parados no SNS. Hoje, segundo o Sindicato dos Médicos Dentistas do Setor Público e Social, esse número pode já ultrapassar os 70. Não admira que quem soubesse da existência de médicos dentistas no SNS desconfie agora que aqueles não passam de uma miragem.
O expoente máximo deste surrealismo nacional é, sem dúvida, a saga dos gabinetes de medicina dentária do SNS. São como as notas de 500 euros: sabemos que existem, mas raramente as vemos. Acrescente-se que muitos deles foram abençoados pelo PRR ou por autarquias em vésperas de eleições, sem que as mansas (ou virtuais) oposições se dessem ao trabalho de questionar o retorno do investimento autárquico em benefício dos munícipes.
O Estado, num assomo de planeamento digno de uma paródia, comprou cadeiras, equipamentos e até inaugurou espaços. Provavelmente alguma das inaugurações ainda teve direito à presença da fanfarra local a entoar o “fado do desgraçadinho”, tão a propósito da efeméride em causa. O único pormenor que parece ter escapado foi de promover a contratação dos médicos dentistas numa adequada carreira para lá trabalhar e enquanto isso, milhares de consultas necessárias são desperdiçadas todos os meses por falta de uma carreira que atraia e fixe estes profissionais.
Temos, assim, consultórios-fantasma, monumentos imaculados ao desperdício, a ganhar pó, enquanto um milhão de portugueses confessa nunca ter ido a uma consulta de saúde oral, sendo que, para 300 mil deles, a razão é puramente financeira, tal como foi noticiado pelo Expresso a 24 de abril passado. É o equivalente a construirem-se umas piscinas olímpicas e depois afixar um letreiro a dizer “Proibido nadar por falta de nadador-salvador”.
A OMS apela ao acesso universal a estes cuidados e Portugal, subscritor de todas essas bonitas palavrinhas, continua a ser identificado pela OCDE como o 3º pior país da UE relativamente à satisfação das mais básicas necessidades de saúde oral. Temos consultórios sem médicos dentistas, médicos dentistas sem carreira no SNS e uma população que, ou se habitua a sorrir com a mão a tapar a boca, ou se endivida para poder mastigar sem dor
Mas seria injusto acusar o SNS de discriminar os d(o)entes. A política de “portas fechadas seletivas” é, felizmente, muito mais abrangente e democrática. Num dia, são as urgências de pediatria que encerram, convidando os pais a uma peregrinação noturna pela autoestrada, com uma criança febril no banco de trás, em busca do hospital que calhou estar de serviço. Noutro, são as urgências gerais ou as maternidades que entram neste carrossel de encerramentos intermitentes, transformando o ato de ficar doente ou de dar à luz numa verdadeira lotaria geográfica.
A justificação é sempre a mesma, entoada como um mantra pelos nossos governantes: a “falta de recursos humanos”. E, rezam as estatísticas europeias, Portugal tem mais médicos por 100.000 habitantes, do que a média comunitária. Imagine-se o que seria se assim não fosse. No que à Medicina Dentária diz respeito, é uma desculpa curiosa num país que, na europa, mais forma médicos dentistas, genericamente conotados pela sua excelência, mas que depois assiste, impávido e sereno, à sua fuga para o setor privado ou para o estrangeiro, de muitos dos mais de 13.000 profissionais inscritos na Ordem, permitindo que menos de 1% deles exerçam no SNS e cuja estabilidade laboral estará a par da estabilidade oferecida por um mar revolto a um barco a remos da arte xávega.
O cidadão fica no meio deste teatro do absurdo. Paga a sua quota para um clube cujos serviços mais essenciais estão cronicamente “em manutenção” ou funcionam com a fiabilidade de uma previsão meteorológica a longo prazo. A saúde, que a Constituição consagra como um direito universal e tendencialmente gratuito, torna-se um luxo. Quem pode, paga duas vezes: uma, nos impostos e outra, no balcão da clínica privada. Quem não pode, reza para não ficar doente ou, no caso da saúde oral, aprende a sorrir de boca fechada.
No fundo, o estado da saúde oral no SNS não é uma anomalia. É o sintoma mais visível e talvez o mais irónico de uma doença crónica que o sistema perpetua desde a criação do SNS a 15 de setembro de 1979. É a metáfora perfeita para um serviço que tem as ferramentas, os edifícios e os equipamentos, mas que se esqueceu do essencial: as pessoas para o fazer funcionar. Pessoas que cuidam e pessoas que precisam de ser cuidadas.
Assim, no que toca à saúde oral nos serviços públicos portugueses, a única coisa verdadeiramente universal e gratuita é a ironia da situação e da próxima vez que precisar do SNS, não se esqueça de consultar primeiro o mapa de serviços encerrados. E se, por milagre, encontrar uma porta aberta, desconfie. Tudo indica que, a única coisa que parece funcionar 24 horas por dia, 7 dias por semana, no SNS é a porta de saída… para o setor privado. Este último que, em variados casos, apenas sobrevive (comodamente) porque se senta à mesa do Orçamento. Inexplicável.
observador