A guerra cultural

Ao longo da história houve várias guerras culturais. Pode mesmo dizer-se que elas são constantes. O que não admira pois que é a cultura que molda a maneira como as pessoas vêem o mundo e agem em conformidade. Dela depende o entendimento da história, a compreensão da vida em família e em sociedade, da religião, da moral e das várias facetas da identidade. A cultura é ontológica para o ser humano. A guerra cultural faz-se pelo controlo daqueles elementos que fazem parte de nós todos. É a luta em torno da questão de saber o que é mais justo e racional. Quanto mais rico e avançado for o país mais assim será. Trata-se, em primeira mão, da luta pelo poder.
O domínio da cultura é, portanto, um poderoso instrumento político. Sabia-o bem o Santo Ofício, essa infame polícia da intimidade que vingou no nosso país durante mais de três séculos, bem como o Marquês de Pombal ao arredar os jesuítas do ensino e ao perseguir a alta nobreza da Corte. Também o sabia Bismark ao substituir o ensino clerical, que culminou com a expulsão dos jesuítas e o controlo estatal do ensino, pelo ensino oficial com receio de críticas ao estado e à unidade alemã em torno do Kaiser. Estaline e Hitler foram exímios na manipulação da guerra cultural e, mais perto de nós, Salazar e Franco também.
O esquerdismo marxista escolheu a luta pelo domínio cultural desde os anos vinte do passado século. Gramsci percebeu logo que sem o ascendente cultural a revolução seria impensável num país europeu. Sabia muito bem que as sociedades vivem de um substracto cultural que as cimenta, a que chamou «hegemonia». No caso italiano pontificava o catolicismo e daí a confessa admiração que Gramsci tinha pelo papel dos padres na consolidação do credo. Nas mesmas águas navegou a «teoria crítica» do capitalismo avançado da escola de Frankfurt, com ramificações até hoje. Pelo caminho ficou o marxismo ortodoxo com a sua estúpida tese da desvalorização da cultura como mera expressão das relações materiais de produção que a antecediam e da chegada ao poder na sequência de um «levantamento popular» dirigido pelo partido como se vivêssemos na Rússia de 1917. A transformação da luta de classes em luta pela hegemonia cultural é a prova que o marxismo-leninismo à moda de Álvaro Cunhal e de outros já há muito esgotou o seu prazo de validade. As massas não empobreceram, os lucros das empresas não desceram e o capitalismo não está em crise constante. Resultado; os passavantes da revolução já não são os trabalhadores. Não foi a esquerda que abandonou os trabalhadores. Eles é que abandonaram a esquerda e esta tem de caçar agora em terrenos alheios.
Em vez de falar de economia, porque não pode esconder o êxito do capitalismo, o esquerdismo só quer agora identidades, sexo, etnias e «opressores». Apresenta-se como o reino dos «justos» contra o reino dos maus e dos egoístas e apela aos sentimentos básicos do ódio, da inveja e do ressentimento. O «revolucionário» agora é a mulher vítima do homem, o homo e transsexual vítimas do heterossexual, o gordo vítima dos produtos açucarados e pouco saudáveis do capital, o estudante ignorante e sem sucesso vítima da «opressão» académica, o «colonizado» eterna vítima do europeu, os pobres vítimas dos ricos e a natureza vítima da ganância da humanidade em delírio.
Gramsci, que morreu cedo, não chegou a ter consciência disto, mas a escola de Frankfurt cedo se apercebeu do filão.
Ao esquerdismo de hoje, depois da queda do muro de Berlim, não resta outra solução senão a luta pelo domínio cultural. O que o motiva agora é a hegemonia cultural. Apostou tudo nesta. Aparece ao lado das manifestações sindicais e dos imigrantes ilegais mas cada vez com menos convicção e as oportunidades são cada vez mais raras. Como não sabem lidar com os êxitos do capitalismo e da democracia liberal e já ninguém liga nada à luta de classes falam agora nos seus substitutos, o «consumismo» e a «opressão».
O marxismo estruturalista, Althusser, Balibar, Laclau e Poulantzas ao leme, há já muito que tenta sobreviver através de metáforas e artifícios. Diz-nos que lá por a economia, como Marx dizia, ser a estrutura determinante em última instância do modo de produção capitalista isso não significa que ela seja sempre o factor dominante em cada momento, coisa que Marx nunca disse. Para aqueles a economia é determinante mas só porque é ela que determina a instância (não económica) da estrutura social que domina em cada momento. Esta falácia sem conteúdo teórico preciso que nos quiseram e ainda querem impingir não é mais do que a constatação que o marxismo se engana ao caracterizar a sociedade capitalista de hoje com base no materialismo. Esqueceu-se que os factores culturais são tão importantes como a economia, ou mesmo mais, na caracterização de uma sociedade tão fragmentada e plural como a actual, em que os diversos níveis da realidade se entrecruzam sem precedências lógicas rígidas, coisa que qualquer aluno do primeiro ano de direito tem a obrigação de saber. De maneira que das duas uma; ou, para tentar dizer qualquer coisa de aproveitável, aqueles estruturalistas renunciam ao marxismo ou continuam nele mas batem com a cabeça na parede ao tentar compreender a complexidade da sociedade actual a partir dos postulados do estúpido materialismo histórico.
O esquerdismo sabe bem que no caminho para o socialismo revolucionário esbarra com instituições como a família, a iniciativa privada, a liberdade, a religião e as hierarquias naturais. Como os operários já não querem saber do marxismo para nada, toca de politizar as esferas privadas da vida e a cultura, na senda da escola de Frankfurt. Tudo faz para as prejudicar. Mas entrou mal na luta cultural. Lançou mão do wokismo, esse rol de disparates e de inanidades sobre o qual já aqui escrevi. A irracionalidade e o fanatismo são tamanhos que alguma (muito pouca) esquerda mais lúcida já está a querer fazer marcha-atrás. Mas já vai tarde. O wokismo ficou e ficará agarrado à esquerda e, bem vistas as coisas, não pode deixar de ser assim porque o conspícuo esquerdismo não foi capaz de avançar com melhor. O wokismo já chegou às organizações internacionais como a ONU e a sua agenda 2030 e até às empresas que nele descortinam, claro está, uma oportunidade para vender mais.
Mais um passo e o esquerdismo, para cevar o seu ódio à cultura democrática, liberal e personalista do ocidente, converte-se ao Islão, não ao Islão moderado que merece todo o respeito e consideração mas ao outro, ao do terrorismo religioso, felizmente minoritário. Deve seguir o exemplo do célebre terrorista venezuelano Carlos, «o Chacal», há muito convertido. Comecem por não comer carne de porco, aproveitem e façam a circuncisão e casem com várias mulheres ao mesmo tempo. Incoerência? Não. Vale tudo, pois então, desde que contra o ocidente.
O que pretende agora o esquerdismo em prol da sua hegemonia? Rejeitar a família natural, abolir qualquer forma de hierarquia vista como «opressão», eliminar qualquer diferença sob pretexto de «igualdade», sem suspeitar que as desigualdades favorecem o desenvolvimento individual e social em nome da complementaridade, deseducar as crianças tirando-as aos pais através do ensino estatizado onde nada aprendem para os transformar em dóceis vítimas do wokismo, nacionalizar a família, etc… Para tanto não hesita em inventar uma linguagem adequada para encaixar as coisas dentro dos conceitos obtusos que usa, em falsificar a história, em negar a realidade, em denegrir a ciência substituindo-a por mentiras, em abastardar as consciências, em eliminar os laços familiares e naturais, em intimidar e perseguir quem não alinha através de métodos que fariam inveja à PIDE. O objectivo cultural do esquerdismo de hoje não é, ao invés do que outra esquerda outrora quis, emancipar o homem transformando-o em cidadão, «livre e de bons costumes», adulto, votante e responsável. Nada disso. O que pretende é infantilizá-lo e fragilizá-lo de modo a ficar sozinho e sem defesa perante as enormidades que quer inculcar através dos manuais escolares, do ensino estatizado e da comunicação social televisiva, esse bastião do wokismo. O método é traiçoeiro mas eficaz.
O que o wokismo sobretudo quer é impedir o desenvolvimento livre e racional dos indivíduos A razão é muito simples. O desenvolvimento da personalidade, mensagem dos gregos e dos cristãos, será sempre um travão ao avanço do socialismo. É preciso destruir a personalidade individual. E eliminar as naturais diferenças. Nivelar por baixo é o seu lema. O chefe da guerra cultural do esquerdismo nunca é o homem. É o estado, sempre o estado, cada vez mais estado em defesa dos «oprimidos», como dantes o septuagenário cavaleiro, o inverosímil D. Quixote, arremetia em defesa de uma camponesa sua vizinha arvorada a D. Dulcineia de Toboso, sua terra natal.
O instrumento da hegemonia cultural esquerdista é, como não pode deixar de ser, o autoritarismo ou seja, uma política fiscal expropriatória, mais impostos, portanto, mais despesas públicas, mais funcionários públicos e mais perseguição ideológica. A hegemonia que pretende só pode ser construída assim. Por cima do cidadão reinaria um estado tentacular, minucioso, abundantíssimo em leis e regulamentos de toda a espécie, feitos em nome da nossa «saúde», rigoroso e omnipotente. Por baixo dele um rebanho de cidadãos despersonalizados, imbecilizados, hedonistas, mais ou menos acéfalos e dependentes. A única hierarquia reconhecida seria a própria do estatuto dos governantes e dos altos funcionários públicos em boa hora chamados à governação e que em nosso nome tudo decidiriam. É este o futuro que nos quer reservar o caldo cultural esquerdista. Avé, líderes esquerdistas e quejandos, os que vão morrer vos saúdam.
Concluindo, o esquerdismo foge da realidade como o diabo da cruz. É uma colecção de anormais que se meteram num beco sem saída e a quem resta como única solução saltarem em frente. O partido comunista só aceita a herança deles a benefício de inventário, ou seja, até onde deles puder retirar certezas — ou não fosse o cabedal de experiência comunista velho já de mais de cem anos. Quando lhe convier abandona-os. Mas até lá o esquerdismo continuará a incomodar muita gente. Vem a propósito uma frase de um velho amigo meu, que infelizmente já cá não está: «Não tenho medo dos fascistas nem dos comunistas. Tenho medo é dos estúpidos».
observador