A coragem de ser aborrecido

Na reunião matinal da clínica do dia nesta segunda-feira, como em todas as outras, os pacientes relataram aquilo que fizeram no fim-de-semana. Enquanto alguns foram a concertos, encontraram amigos e família ou saíram à estrada com a autocaravana, houve um doente que disse ter tido um fim-de-semana “aborrecido”. Mais tarde, em conversa com o doente consegui descobrir que o “aborrecido” fim-de-semana tinha sido na verdade, uma tarde bem passada a cuidar do jardim em casa e que, ao contrário do que se possa pensar pelo adjetivo previamente mencionado, não tinha sido de todo desagradável para o paciente. Porquê então chamar uma tarde assim de aborrecida? A resposta do paciente surpreendeu-me: comparado com os fins-de-semana “excitantes” dos outros pacientes o seu seria, na sua opinião, com certeza visto como enfadonho. Sendo assim, tinha evitado entrar em detalhes no âmbito do grupo.
Esta conversa deu-me que pensar. Será que o maior pecado dos nossos tempos é sermos “aborrecidos”? Será um atentado ao pudor não estar a par das últimas tendências ou fazer atividades dignas de um feed do Instagram ou de um reel do TikTok? Entre um constante bombardeamento com trends aparentemente vindas do nada (mas o que raio são Labubus?!) e notícias de diversos graus de relevância (não, não acompanhei os últimos desenvolvimentos do julgamento mediático celestial, sim, esse que estão a pensar) parece que deixou de ser permitido o ato de, pura e simplesmente, estar “na sua” em paz, sem se ter medo de ser acusado de ser retrogrado ou estar desatualizado. A casa do meu paciente bem pode ser o seu jardim, mas em 2025 ele que se livre de o anunciar por aí sob pena de ser ridicularizado por não ter aproveitado o sol de sábado nos jardins de Versailles.
Mas se calhar estou a colocar o ónus da questão no ponto errado. Terá mesmo a ver com o que se faz ou onde se está ou com o facto de ter de se estar a fazer algo, seja o que for? E, de preferência, num contexto de visibilidade pública com uma hashtag associada?
Não é que eu ache que, por exemplo, regar crisântemos seja superior a fazer parapente no Algarve. Mas também não acredito que fazer parapente torne alguém, por si só, mais interessante. No fundo, ambas as situações podem ser transformadas em mais um reel genérico com música royalty-free e uma mensagem comovente. O que torna as atividades que fazemos, ou os momentos que vivemos, mais ou menos relevantes é o que sentimos neles e o que estes significam para nós. As opiniões dos outros podem ser adições agradáveis ou apenas barulho de fundo.
Às vezes tenho saudades do tempo em que uma tarde passada a aparar sebes não era algo que exigisse uma justificação social. Hoje em dia, é como se a ausência da espetacularidade precisasse de ser defendida com argumentos clínicos. “Desculpem, não fui a lado nenhum, estava a evitar burnout” ou “estive a tratar da minha saúde mental e fiz um detox de seres humanos durante 48 horas consecutivas”. E ainda assim há sempre alguém que pergunta: “Mas não viste pelo menos uma série nova? Não foste a um brunch minimalista com vista sobre o rio? Não fizeste ao menos um retiro de pilates com capivaras?” Não, não e não (isso existe sequer?!).
Adorava que as pessoas fossem mais aborrecidas. A sério. Era bom para todos e, se sou psiquiatra e o meu argumento de autoridade serve para alguma coisa, deve ser verdade. Seria bom para a saúde mental, para o planeta e, arrisco-me a dizer, até para a qualidade do sono coletivo. Se o ritmo circadiano das redes sociais passasse a funcionar inspirado na cultura de siesta espanhola e não em adrenalina constante talvez já não estivéssemos todos cronicamente exaustos, ansiosos e com a autoestima feita num oito com direito a uma story com uma frase motivacional (ok, pronto, nem todas são más).
O aborrecimento devia voltar a ser algo aceitável, com um conceito de marketing que o transformasse em luxo até. Devíamos celebrá-lo: “Parabéns! Mais um fim-de-semana passado de havainas a reorganizar os livros por ordem alfabética. O auge do sossego!” Mas não. As pessoas lá se sentem culpadas, como se estivessem a desiludir o algoritmo e o universo social. E no fundo estão porque, quem não alimenta a máquina da excitação constante, corre o risco de se tornar invisível no mundo dos likes. Mas arrisco-me a dizer que os likes que nós damos a nós mesmo são mais importantes a longo prazo. Sim, eu sei, um conceito revolucionário, como é que não pensámos antes nisto (pronto, só estou a relembrar).
Na verdade, todos queremos apenas parecer interessantes o suficiente para não sermos deixados de fora. Somos humanos, afinal. Porque no fim, o maior medo não é ter uma vida pacata, é ninguém saber que ela existe. Como é que se prova valor num mundo em que o silêncio é confundido com irrelevância? E assim lá andamos todos a produzir pequenos trailers das nossas vidas como se fôssemos protagonistas de uma série que ainda nem foi aprovada pela Netflix. Talvez uma maneira de ser inovadora neste mundo atual seja promover um seminário para ensinar a competência de responder à pergunta “como foi o teu fim-de-semana?” com um pouco cerimonioso “nada de especial”.
No mundo psiquiátrico que habito estas pressões são faladas mais abertamente. Parece até que a ideia de recuperação passou a estar ligada à ideia irrealista e entranhada de viver uma saga épica de “superação” e que o simples ato de se estabilizar, sem crises profundas nem milagres, mas antes passo a passo, parece indigno de atenção. É como se a paz mental, por si só, não fosse emocionante o suficiente. Mas e se fosse? E se voltássemos a considerar a normalidade uma conquista e não um aborrecimento? Estamos tão viciados em picos que já não sabemos viver num planalto mais estoico.
Não quero com isto dizer que nunca se deve sair da zona de conforto. Mas também desencorajo vivamente uma mudança radical para uma perpétua zona de performance ou para o abismo da comparação permanente. Num mundo mais humano não precisaríamos todos de andar exaustos a correr atrás de uma narrativa extraordinária. Talvez haja mais espaço para apenas ser e estar.
Portanto, sim, adorava que todos fossemos um bocadinho mais aborrecidos. Espero que os meus pacientes, e as pessoas em geral, passem mais fins-de-semana no jardim, mais serões a olhar para o teto, mais manhãs a pensar no alívio que é não ter de ser extraordinário. Se há algo verdadeiramente radical neste tempo acelerado e hiperligado é sermos genuinamente banais e estarmos bem com isso.
observador