Tyler, The Creator: 10 álbuns para (re)criar um mundo

O semblante pensador, de Rodin, esconde a insubordinação, de boné. A primeira cena de Yonkers, o videoclip que apresentou Tyler, The Creator ao mundo, é um cartão de visita inolvidável: um ruído agudo oscila enervante, uma bateria mínima, vulgar bombo e caixa, e um baixo capturado do fundo do poço, profundo e ameaçador, abrem caminho ao primeiro verso do rapper, que nos olha de frente, olhos nos olhos — “eu sou um paradoxo com pernas”. Nos anos seguintes, o aviso foi cumprido: de urtiga a flor de estufa, de hostil a meloso, de homofóbico a bissexual, de indie a titã da indústria, os paradoxos de Tyler formam uma discografia fascinante e dificilmente superável.
Don’t Tap The Glass é o décimo álbum de Tyler, The Creator: nove LPs e um EP natalício. O álbum lançado no final de julho, sem qualquer pompa nem circunstância — mero aviso nas redes sociais, aqui está ele — lidera a tabela de vendas norte-americana, à frente de Justin Bieber ou do recém-falecido Ozzy Osbourne. É o terceiro álbum consecutivo do músico que entrou diretamente para a liderança do top da Billboard, e não estamos a falar propriamente de um conjunto de canções de ambição desmedida, pelo contrário, como o próprio explicou na sua única entrevista de promoção, à rádio nova-iorquina HOT 97:
“Comecei o álbum no dia 31 de dezembro, fiz um beat, acordes e baterias incríveis, mas odiei o resultado. E apaguei. Dude, estou tão farto de mim. Abri um novo ficheiro e só quis fazer algo urgente, alegre, que soasse a computador, sem cordas, sem piano, nada disso (…) tudo tem que ser animado, eu quero mexer-me, nada de merdas lentas, sem pensar muito, quero ser parvo e divertir-me de novo.”
Um álbum descartável de meia-hora, ávido de dança e parvoíce, sem pestanejar, é o álbum mais vendido nos EUA. Como é que chegámos aqui? Reouvimos os álbuns do músico, produtor, designer, skater e líder dos Odd Future para chegarmos a uma conclusão.

▲ Se ainda continuam céticos, citemos um dos mais ambiciosos ditos de Tyler, The Creator: “Não vou repetir: sou o melhor do mundo”
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Aos 16 anos, Tyler Gregory Okonma, miúdo reconhecido nas ruas de Hawthorne, Sul da Califórnia, como um ciclista de BMX com aptidão musical, desafia um punhado de vizinhos a compor canções, curtas metragens e palermice generalizada, entretanto intitulados de Odd Future Wolf Gang Kill Them All — Wolf Gang para os amigos, Odd Future para os outros. Dois anos depois, em 2009, os Odd Future lançam no site do coletivo o álbum de estreia de Tyler, The Creator: Bastard.
O mal-amado primeiro álbum, espírito de mixtape, sombrio e minimalista, está desaparecido das principais plataformas de streaming — há quem diga que foi retirado por direitos de autor não autorizados, outros defendem que, provavelmente com razão, o músico decidiu apagar este enxurro de ordinarice. Tyler encarna um terapeuta, “Dr. TC”, numa voz modulada, ainda mais grave, que guia as alarvidades que ocorrem na então mente adolescente do músico: relatos de homicídios, consumo de cocaína em igrejas, tentativas de suicídio e a violação consecutiva de mulheres. A sebenta segue os ensinamentos de Eminem à risca, mais excesso, mais choque, a esticar a corda, até arrebentar.
O choque é a linguagem confortável para destapar uma ausência dilacerante: “My father’s dead, well, I don’t know, we’ll never fucking meet/ I cut my wrist and play piano ’cause I’m so depressed”, versa em Bastard. Criado pela mãe, Tyler fomentou um ódio e fascínio pela figura paterna ausente, um emigrante nigeriano que, até hoje, se desconhece o nome. Em compensação, formou uma nova família, os Wolf Gang, um misto de Wu-Tang Clan e Jackass; primeiro, chegaram os amigos de infância, e depois, outros pequenos génios, desde Earl Sweatshirt a Frank Ocean, mas a alcateia tinha um líder evidente: Tyler, o bastardo.
“Goblin”O terramoto de Yonkers, primeiro single de Goblin, registou réplicas violentas na estreia televisiva de Tyler e companhia: ao lado de Hodgy Beats, mascarados de balaclava, gritam, correm e uivam, possuídos pelo invejável demónio da juventude. Naquela noite, empoderados pelo sintetizador e batida claustrofóbica, os Odd Future entraram pela nossa casa adentro, aos pontapés.
Goblin é o tradicional segundo álbum: a mesmo cantiga — melodia sepulcral, notas esparsas, samples ao mínimo — engrandecida pela confiança de provas dadas — regressa o terapeuta e o paciente ordinário, que confessa, enfim, que é tudo fantasia, o rapaz nem bebe, nem fuma, quanto mais cocaína e homicídios. A violência hiperbolizada é uma espécie de subgénero do hip hop, o horrorcore, célebre pelo clássico persecutório dos Geto Boys, Mind Playing Tricks on Me, ou em Portugal, pelas crónicas de drogas e pilhagem de Allen Halloween. As canções desafiam os ouvintes, sem dar por ela, estão hipnotizados a celebrar versos que fomentam a violação; Goblin tenta resolver este paradoxo, argumentando que a única violência é auto infligida: “I’m not a fucking role model / I’m a nineteen year old fuckin’ emotional coaster with pipe dreams”.
2011 é o ano de viragem para os Odd Future: a Sony edita o coletivo através da subeditora Odd Future Records; o canal Adult Swim contrata os músicos para criar um programa de sketch de comédia; o xamã R&B Frank Ocean, que aqui participa na voyeurista She, estreia-se em nome próprio; Tyler cria a marca de roupa Golf Wang; Earl Sweatshirt é recambiado para um colégio interno na Samoa e o seu desaparecimento ecoa efervescente em fóruns da internet — “Free Earl!”; os amigos escrevem, desenham, filmam e gravam completamente sozinhos, numa revolução contida, à conquista do mundo.
Aos 21 anos, a maioridade norte-americana, Tyler supera as dores de crescimento; as batidas soturnas cedem a uma complexidade harmónica, num álbum ambicioso que ruge além do seu séquito de adolescentes problemáticos. As letras do rapper, contudo, mantêm-se inalteráveis, no seu melhor estilo, a praguejar e a lavar a roupa suja, com um novo elenco de personagens, Wolf e Sam, uma amizade paradoxal que representa, como costume, um conflito interno irresolúvel.
A canção inaugural é o melhor reflexo desta dicotomia: a sumptuosidade dos arranjos é acompanhada pela poesia de, e passo a citar, “Fuck you, fuck you, fuck you, fuck him”. Quando arrisca uma balada, em IFHY, conclui: “I fucking hate you, but I love you”; esta ferocidade resulta numa sucessão de bangers — Tamale, Domo23 ou Rusty. A faixa emblemática é Answer, onde fantasia um telefonema com o pai, a primeira de muitas canções sobre as consequências de atender ou não atender um telefone, o trinar de encontros e desencontros que constroem uma vida.
As canções de Wolf com Nas, Pharrell, Erykah Badu, e as participações do músico em discos de Pusha T ou The Game, romperam o isolamento dos Odd Future; num género que vive da novidade das ruas, os rappers enfileiram pela oportunidade de gravar em estúdio com os novos profetas do hip hop. E agora, o único caminho é para cima, nada interrompe este ímpeto, certo?
“Cherry Bomb”No instante de intensa expectativa, de vai ou racha, Cherry Bomb é um fracasso de vendas e de crítica, e o Reino Unido, o seu principal mercado externo, sob ordem da então Secretária do Interior, Theresa May, proíbe a entrada do músico em terras de sua majestade, por incitação ao ódio e homofobia. A digressão europeia é cancelada. Os demónios de Tyler finalmente o morderam no rabo.
Numa entrevista recente, o músico confessou o que, naquele momento, não se permitiu admitir em público: as canções de Cherry Bomb não eram suficientemente boas. “O meu objetivo era provar que eu era um produtor diversificado, que conseguia fazer qualquer género de música. O meu foco era a produção, mas por causa disso as canções sofreram, deixei as letras e a estrutura para segundo plano.”
Cherry Bomb é um desastre grandiloquente, a produção saturada almeja Kanye West, mas acerta mais no maldito Death of a Ladies’ Man de Leonard Cohen. No entanto, sejamos justos, estão aqui as peças, baralhadas é certo, que formariam o puzzle musical dos próximos álbuns de Tyler, o concílio entre o intérprete espalhafatoso — Cherry Bomb — e o compositor de minuciosos medleys — Fucking Young / Perfect, só faltou tratar as canções com mais carinho.
Cinco anos depois de Cherry Bomb e a proibição de desembarcar no Reino Unido, o músico enterrou o machado, em toda a sua glória de diabrete, ao receber o prémio de melhor artista solo no palco dos BRIT Awards: “Quero mandar um agradecimento especial a alguém que me é muito querido, que fez com que eu não pudesse vir a este país há cinco anos. Eu sei que ela está em casa furiosa. Obrigado, Theresa May.”
“Flower Boy”No jardim mais inesperado, aquele vespeiro de injúria e autocomiseração, brotou uma flor exuberante. Hoje é difícil de compreender a magnitude do anúncio: o rapper que era acusado de homofobia revelou-se bissexual — “eu beijo homens desde 2004”, confessa em I Ain’t Got Time. E talvez ainda mais chocante, Flower Boy não era uma compilação de batidas sombrias, o sol dissipou a penumbra, as canções espreguiçam-se ao despertar, são todas violinos e pianinhos, a pedalar numa manhã serena californiana.
A complexidade harmónica é assombrosa, ainda agora este miúdo fazia arranjos com os cotovelos; a versatilidade da produção, e as manobras da voz, entre agudos falsetes e graves até tilintar o diafragma, permite explorar, numa mesma canção, géneros tão distantes como a neo soul, devaneios progressivos, batidas portentosas ou rock psicadélico. Imaginem as canções como uma casa, o Tyler percorre os corredores, espreita pela janela, quebra a parede e encontra uma nova divisão.
911 / Mr. Lonely é a magnum opus: os coros mansos de Frank Ocean e Steve Lacy amansam a entrada, o pulso de um 808 pega-nos de imediato, depois da captura, levam-nos a passear pelo bairro, para a meio do caminho, dá-nos na cabeça com um hi-hat nervoso, e a esta hora já ninguém sabe a quantas anda, exceto o feiticeiro por detrás das cortinas, a dançar para nos distrair: “I’m the loneliest man alive/ But I keep on dancin’ to throw ’em off”.
O corpo estranho entre o renascimento — Flower Boy — e a consagração — Igor — é um EP natalício, que como o título indica, foi inspirado pelo filme Grinch — não aquele protagonizado por Jim Carrey, o outro, de animação. O compositor com pedigree em canções de Natal, Danny Elfman, desafiou Tyler a compor o single da banda-sonora — porque não, o rapper tem uma canção chamada Fuck This Christmas e foi preso por vandalismo numa noite de Natal, querem melhor CV?
Após lançar You’re a Mean One, Mr. Grinch, decidiu prosseguir a temática num EP de 10 minutos, que merece ser recordado sobretudo pelo compositor de encomenda que Tyler poderia ter sido: canções de pop barroco, R&B adolescente, eletro ambiente e música de fundo de supermercado. E não percamos mais tempo com este EP que ninguém recorda, o mais importante a reter de 2018 foi o único concerto de Tyler, The Creator em Portugal, numa apresentação imaculada, de energia lunática, no palco do Primavera Sound do Porto.
“Igor”Era uma vez o Igor, um homem de cabeleira loira, fato azul bebé e óculos escuros, que saltitava pelas ruas, até, inesperadamente, apaixonar-se por outro homem, um amor avassalador que prometia parar por ninguém — nem mesmo por uma namorada. O triângulo amoroso de Igor é a proposta conceptual mais bem-sucedida de Tyler, um álbum que consegue o impensável: traduzir não só em verso, mas também em melodia, arranjos e produção, a vertigem da paixão, ciúme e rompimento.
A montanha russa, entre o assoberbamento e a desilusão, não tem um momento de descanso, sempre em altas: extraordinárias canções de amor, sem peneiras, como EARFQUAKE, que foi originalmente composta para o Justin Bieber; o groove insano, que surge de lado nenhum, a meio caminho de RUNNING OUT OF TIME; a inveja comezinha feita harmonia dissonante em NEW MAGIC WAND; o amor como arma, ao ponto de um refrão que, literalmente, engatilha a metáfora — A BOY IS A GUN; ou funk clerical de despedida de ARE WE STILL FRIENDS?. Em síntese, uma obra-prima.
Os músicos que colaboraram nas gravações de Igor apontam para as influências do álbum — Kanye West, Pharrell Williams, Solange, CeeLo Green ou Jack White — mas são um mero apontamento. Igor é um espetáculo de um homem só, como evidenciam as canções que parecem sussurradas num quarto fechado, e ao mesmo tempo, de janela aberta para uma paisagem imensa — ouvem-se carros, aviões, tiros, passos apressados, uma vida de passagem. Igor liderou a Billboard e foi galardoado com o Grammy de Melhor Álbum Rap, a consolidação definitiva do rapper na indústria musical, ou melhor, do músico, há sequer rap e barras em Igor? Ainda alguém se lembra daquele bastardo malcriado?
“Call Me If You Get Lost”É o álbum betinho. A persona agora é o Tyler Baudelaire, um novo rico em grand tour pela Europa: Rolls Royce de capota aberta, malas Louis Vuitton, relógios Cartier, calções bege e sapatos de vela, mas com uma certa sofisticação, podem vê-lo com os amigos em Cannes, Roland Garros, ou a bordo de um iate, a paparicar cerejas. Ele já nem gosta do supracitado insulto bitch, garante em CORSO. O conceito de Call Me If You Get Lost é pouco relevante — em suma, um dito cidadão do mundo numa viagem, por dentro e por fora — atentem é ao regresso do rapper habilidoso, quando alguns críticos já duvidavam da sua capacidade de voltar ao malabarismo das barras de hip hop.
O álbum é um passo à frente e outro atrás. O passo adiante é a mesma construção de mundos melódicos de Igor, aqui ainda mais lúcido, incandescente pelo brilho luxuoso em volta — HOT WIND BLOWS com Lil Wayne é puro Burt Bacharach e o medley SWEET / I THOUGHT YOU WANTED TO DANCE é uma exibição de culturismo, olha os meus músculos de produtor, arranjador e cantor em dez minutos consecutivos, faz melhor se conseguires. O passo atrás é a lírica com a insolência e bazófia dos primeiros álbuns, em LUMBERJACK ou JUGGERNAUT, agora num escopo imenso, a remeter para os grandes álbuns de hip hop de outrora, os Lil Waynes, Jay Zs ou Kayne Wests. A volta vitoriosa terminou como cabeça de cartaz do Coachella, um dos maiores festivais do mundo.
“Chromakopia”Chromakopia é o álbum mais honesto de Tyler, The Creator, talvez o único. E o método que conhece para a intimidade é, pois claro, um disfarce, desta vez literal, encarna um tal de Saint Chroma que utiliza uma máscara negra para abrir o jogo. A outra personagem do álbum é real, Bonita Smith, a mãe do músico, que tem uma daquelas personalidades que se dizem coloridas, e certamente explica a exuberância e autoconfiança do filho: “Tu és o maior”, repete, “não confies em ninguém”, “não cedas um milímetro”, “usa preservativos”, ou ainda, “nunca digas aquela bitch que a amas”.
Os conselhos maternais guiam um passeio nostálgico pelas ruas de Hawthorne. De resto, Chromakopia não inventa a roda, é quase um best of de todos os álbuns de Tyler: as canções românticas R&B, aqui particularmente The Neptunes — Darling, I; as ego trips progressivas — Noid, com um inesperado sample do zambiano Paul Ngozi; as batidas engenhosas de laboratório na cadência militar de Thought I Was Dead; ou a resposta ao hino WAP em Sticky, a querer dizer que afinal os homens também fazem salivar.
A honestidade é transparente em Like Him, o desenlace de uma história que já vai longa: o rapaz perseguido pelo fantasma do pai ausente. Após tanta transformação, o desfecho inevitável é as pazes com o seu passado, foi este descaminho que o levou ao cume. Aos 33 anos, é o próprio que nos diz, neste campeonato, é Kendrick Lamar e mais ninguém — “The biggest out the city after Kenny, that’s a fact now”. E os factos não se discutem.
“Don’t Tap the Glass”“Número um: mexer o corpo. Nada de ficar parado, ‘bora dançar, bro”, ordena Tyler, ele mesmo, não há aqui qualquer personagem, apenas um bigode à Lando Calrissian e óculos fundo garrafa. “Número dois, só falar em coisas boas”, continua, em modo regras de Clube de Combate. “Deixa a bagagem em casa, nada de cenas profundas”. Nove álbuns depois, o criador de mundos tirou uma noite de folga, largou os traumas e desamores, abram a pista e acheguem-se, é dança corpo no corpo, como açúcar na boca.
Don’t Tap the Glass é o primeiro álbum do músico descomprometido, algum dia havia de acontecer, o compositor está mais que oleado, dez canções que não chegam a meia hora, os sintetizadores electro, os 808 pulsantes, e as tiradas memoráveis: “Não confio em homens brancos com rastas”. O reportório é o mais brincalhão que há memória, com a energia febril de sempre — Stop Playing with Me — o funk recreativo de chamada em linha, em antecipação de amor — Ring Ring Ring — ou a canção retro de R&B e neo-soul, nesta encarnação vitaminada pela batida Jungle, Don’t You Worry Baby.
Don’t Tap the Glass é, possivelmente, um mero apontamento nesta excelsa discografia, um momento de transição, e, mesmo assim, não tenham dúvidas, é um dos mais bem-sucedidos e melhores álbuns de 2025 — e não existe melhor evidência que esta para o atual estado de graça. Se ainda continuam céticos, permitam-me citar novamente Tyler, The Creator, por uma última vez: “Não vou repetir: sou o melhor do mundo”.
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