Que a força esteja connosco

A sala transformava-se no espaço sideral. As peças de legos eram armas de raios laser ou comandos de naves intergaláticas, enquanto ao fundo, na televisão, passavam as aventuras de Mr. Spock. Crescer com um pai obcecado por ficção científica fez-me passar horas a ver os episódios de Star Trek e assistir, uma e outra vez, aos filmes das cassetes de VHS com a saga da Guerra das Estrelas. A ideia de aventura, de explorar mundos novos, os fatos excêntricos, as lutas entre o bem e o mal eram estimulantes e divertidos. Só comecei a desinteressar-me pela ficção científica quando dei por mim a tropeçar sobretudo em conteúdos distópicos, projeções de um mundo devastado por guerras, destruído por uma civilização decadente, onde os humanos são seres em fuga, acossados pela crise ambiental, por máquinas inteligentes que querem dominá-los ou por outros povos que os oprimem.
Quando eu ainda sonhava com aventuras espaciais, não sei se alguma vez me apercebi de como o autor da série Star Trek usava a possibilidade de sair da Terra para enviar mensagens políticas, que passavam despercebidas à estação que a emitia. “Ao criar um mundo novo com regras novas, eu podia falar de sexo, religião, Vietname e política.” A tripulação de Spock preocupava-se com a paz, combatia o autoritarismo e o imperialismo e punha em causa o racismo, o sexismo e o papel da tecnologia. “Se falasse de um povo roxo num planeta longínquo, a estação não percebia do que se estava a falar. Estavam mais preocupados com os decotes. Chegavam mesmo a enviar um censor para o estúdio para medir os decotes das mulheres e garantir que não se via demasiado os seios”, disse uma vez o criador da Star Trek, Gene Roddenberry.
Mr. Spock vivia no séc. XXIII. Nós estamos no séc. XXI. Quando eu era criança, 2001 ainda era uma data fantástica projetada num futuro longínquo de uma odisseia no espaço. Agora, é um passado já bastante distante. E o presente começa a parecer-se demasiado com o tipo de filmes que me fizeram desinteressar-me pela ficção científica.
Se em 1966 Gene Roddenberry conseguia fintar a NBC, enchendo de conteúdos políticos uma aparentemente inofensiva saga espacial, em 2025 o Presidente dos Estados Unidos fez do Elmo seu alvo político. O Elmo é um bonequinho vermelho e felpudo que, ao lado do Monstro das Bolachas, me ensinou sobre coisas como partilhar. Donald Trump acredita que isso é o tipo de conteúdos “esquerdalhos” que ajudam a endoutrinar criancinhas no comunismo e a contagiá-las com coisas tão woke como respeitar quem é diferente ou ajudar os mais frágeis.
Numa cruzada contra a PBS e a NPR – as redes de serviço público americanas –, Donald Trump conseguiu fazer passar no Congresso um corte de 1,1 mil milhões de dólares, que constitui um rude golpe em estações que já enfrentam os seus próprios problemas e que, assim, ficam com menos disponibilidade financeira para continuar a produzir o tipo de programas educativos que ajudam crianças em idade pré-escolar há 50 anos. Para se ter uma ideia, em março, depois de a Warner Brothers ter anunciado que deixaria de pagar por novos episódios da Rua Sésamo, a produtora Sesame Workshop teve de despedir 20% dos seus trabalhadores, incluindo criadores de conteúdos.
“This is big”, anunciou Donald Trump, na rede social Truth Social, com uma alegria provocada pela destruição que faz lembrar Donald Grump, o monstro com um tufo de cabelo laranja que apareceu em 2005 num caixote do lixo da Rua Sésamo, com um projeto para aí construir uma Grump Tower, arrasando as casas do Egas, do Becas e do Poupas. Já agora: há quem ache que o Egas e o Becas são um casal e, por isso, conteúdo woke, claro.
A resposta à agressividade de Trump foi uma imagem do Poupas Amarelo e do Sr. Snuffleupagus – um amoroso e peludo mamute castanho – com a frase: “Orgulhosos por sermos vossos vizinhos”, publicada na rede social X. Elon Musk disse que a empatia “é um vírus”. E eu gostava muito de acreditar que sim, não pelas mesmas razões, mas porque gostava que esse sentimento se espalhasse pelo mundo. Pelo menos, a resposta da Rua Sésamo tornou-se viral.
Muitos dos conteúdos que marcaram a minha infância foram pensados ainda no rescaldo de algo que aconteceu muitos anos antes: a II Guerra Mundial e num contexto de Guerra Fria. Nesse mundo, havia poucos cinzentos. Era quase tudo a preto e branco: os bons e os maus. Os maus eram feios e tentavam dominar o mundo, os bons eram bonitos e generosos e ganhavam sempre.
Nesse mundo, ser um trafulha não era uma qualidade. Explorar os outros haveria sempre de merecer castigo. E toda a crueldade acabava mal. Era ingénuo? Era. Dava-nos uma ideia limitada e maniqueísta do mundo? Dava. Mas essa ilusão, que também tinha um lado propagandístico, ajudou a construir nas sociedades ocidentais um certo sentido de superioridade moral e de excecionalismo. Foi muito graças a essas ideias que nos convencemos de que a democracia ocidental era uma espécie de produto final perfeito da História.
Foi à boleia dessa ideia que se fizeram muitas guerras e muitas mortes, com a opinião pública ocidental a acreditar que estava “do lado certo da História”. Nós éramos os bons. O que se está a passar agora é uma frecha nesse sistema de crenças. Cada vez mais de nós se confrontam com a mentira que isso representa quando veem as imagens de crianças palestinianas famélicas mortas a tiro à espera de comida, quando percebem a facilidade com que são oprimidas pessoas que se manifestam pela paz, quando assistem à perseguição impune de imigrantes e à forma como os Estados os criminalizam, prendendo em centros de detenção trabalhadores cujo crime era lutar por uma vida melhor.
Perante tudo isto, há quem sinta vontade de fugir da realidade. “Beam me up, Scotty.” Há quem assegure que deixou de ver as notícias e foge dos jornais, para manter a sanidade mental. Para esses, tenho uma má notícia: a ideia de que se pode fugir à realidade é uma ilusão. E uma ilusão perigosa, ainda por cima. Por muito que entenda a vontade de experimentar uma anestesiante alienação, o mundo é o que é e, mais cedo ou mais tarde, perceberemos que estamos dentro dele.
Quando eu era criança, os cardassianos, um povo autoritário que tentava expandir o seu império, foram vencidos pelo Mr. Spock. Eu tenho saudades dos tempos em que os vilões acabavam mal. Mas sei que não posso esperar pela tripulação da Enterprise para me salvar e que as minhas peças de legos já não emitem raios laser mortíferos. Ainda assim, acho que aquelas tardes todas passadas a ver os heróis salvar o Universo não foram em vão. Deram-me, pelo menos, a ideia de que é sempre possível lutar. Que a Força esteja connosco.
Visao