Peso, pausa e postura

Tenho para mim — e talvez erre, mas erro com convicção — que há uma certa sensatez no português. Uma sensatez disfarçada de apatia. Uma sabedoria mascarada de silêncio. O português é educado. É prudente. Quer que o deixem em paz. E só um povo que viu muito, perdeu muito, que se ajoelhou e se levantou tanto quanto nós o fizemos, pode ser dessa maneira.
Sermos antigos ajuda. Portugal tem calos. Portugal tem rugas. Portugal tem desconfiança. E quanto mais nos afastamos da capital, mais essa sabedoria se adensa. O lisboeta protesta. O resto do País desconfia. E a desconfiança, quando bem aplicada, é uma forma superior de inteligência. Por isso, toda a engenharia ideológica falha em Portugal. O português é teimoso. É rebelde de forma passiva. Vivemos sob a força de uma Lei de Lavoisier ao contrário: em Portugal, tudo se cria, tudo se perde, nada se transforma.
Disse, um dia, o Miguel Esteves Cardoso que antes de 1910 não existiam monárquicos. Disse bem. Do mesmo modo, depois dessa data não passou a haver republicanos. A ideia que o povo se molda segundo o capricho intelectual de meia dúzia de cabeças armadas é uma ideia perdedora. Foram os próprios revolucionários que, sem querer, criaram os “monárquicos” — à força de confusão, hemorragia e palavreado.
Eis o que quero dizer: o português tem a pulsão medieval.
Uma inclinação antiga, como um joelho que se dobra sozinho: “arranjem lá quem trate disto e deixem-me estar quieto no meu canto.” Nesse sentido mais restrito, todo o português é monárquico. Sempre foi. Sempre será. Prefere que uma figura de bom porte tome conta das coisas. Quer ordem com dignidade. Quer mandar obedecendo.
É por isso que, excepto no frenesim de faca e alguidar que foi a I República, Portugal nunca deixou de ser uma monarquia. Começámos com D. Afonso Henriques, e depois por aí fora. Intervalo. Depois veio o Estado Novo com o seu regente de granito. Depois o 25 de Abril. E com ele os monarcas republicanos: Eanes, o Bonaparte de cabedal; Soares, o Babar de gravata larga; Marcelo — ele mesmo. O sistema semi-presidencialista é o quê, senão a maneira que se arranjou para podermos eleger o nosso próprio rei?
Repare. A pulsão monárquica do português é tal que ele inventa reis. Não um. Vários. Reis no bolo. Reis no frango. Reis nos pneus. Há coroas no talho, no autoclismo, no balcão da confeitaria. O português não suporta o mundo sem realeza (porque pressente que é uma coisa insuportável). Não consegue viver num país de iguais. Precisa de olhar para cima (e, em podendo, para baixo). Mesmo que seja para um letreiro a dizer “Rei dos Electrodomésticos”.
E, como todo o súbdito, precisa também do cerimonial. Da pompa. Do rito. O enterro do Pinto da Costa foi um funeral de Estado. Foi o enterro de um monarca popular. O do Eusébio também. Um rei triste, mas um rei. E repare bem: basta um casamento de um Bragança para o português voltar a curvar a espinha, todo contente. Fica de olhos húmidos. A televisão chora com ele. Está lá tudo: a devoção, a vénia, o amor plebeu.
Dá-se até o caso quase patológico do fascínio por casas reais estrangeiras. A inglesa, por exemplo. O português não quer ser súbdito do Rei de Inglaterra, mas quer que ele reine. Quer vê-lo a abrir os portões da eternidade. Quer ver o Príncipe a acenar, benzendo o Terceiro Estado.
É, portanto, naturalíssimo que um Oficial de Marinha possa chegar a Belém. Naturalíssimo. Evidentíssimo. Qual é a surpresa? Estatura alta. Olhos claros. Perfil numismático. Farda impecável — dirão os fiscalistas da literalidade que ele já não a usa. Mas usa, amigos. Digo-vos mais: não só a usa como é a própria farda. Gouveia e Melo não é um homem, é uma peça de alfaiate.
E o currículo, perguntará o leitor? Bem. Parece que andou a injectar umas coisas nos braços dos portugueses. E bastou. Organizou a vacinação. Usou PowerPoint. Só em Portugal é que isto faz de um homem um símbolo. Em França? Espanha? Já nem se lembram. Mas aqui, foi o suficiente. Porque, para nós, três coisas bastam. Ei-las: peso, pausa e postura.
E o pensamento — insistirá, ainda não contente? Não se sabe. É o vazio de três Alascas e meio. O que só ajuda. Um rei não tem de ter pensamento. Tem de parecer bem. Apresentar-se com gravidade. E nisso ninguém supera o Almirante. O português não quer ideias. Quer presença. Quer compostura. Quer gravidade de órgão de Estado.
O ponto é simples: Gouveia e Melo pode ser um corpo estranho ao regime — mas é uma luva feita à medida da alma nacional.
Pensará o leitor: “estamos tramados.” Não estamos. Estamos em casa.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
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Visao