O medo e as férias

A minha mãe diz que ter medo é sinal de inteligência. Talvez tenha razão. Mas então porque é que temos medo de coisas tão imbecis?
Não sei. Ninguém sabe. Mas sei isto: aquilo a que chamamos “medo” no nosso quotidiano não é medo nenhum. É outras coisas. O medo dos imigrantes, ou da agenda woke, do fascismo ou do colapso ambiental, ou dos impostos ou das vacinas? São apreensões de folhetim, no máximo desassossegos de agência noticiosa.
Depois há certas manias. O medo da irrelevância, ou de agulhas, de falar em público, ou de palhaços. Aversões ou fobias que são, no fundo, desejos ao contrário. Vontades de sofrer. Uma agulha pica, a irrelevância é desoladora, falar em público pode ser duro, e um palhaço… bem, um palhaço é sinistro, de facto.
Mas tanto num caso como noutro são pequenos e civilizados receios. Inquietudes da vida corrente que nos distraem do medo que importa. Do medo verdadeiro. Do medo nu. Refiro-me, amigo leitor, ao mar profundo. Refiro-me ao escuro. Refiro-me aos monstros que vivem debaixo da cama. O que não tem nome.
Este é um medo que já nos esquecemos que existe. Porque o mundo, com a sua luz vigilante e os seus guiões de auto-ajuda, não permite que se manifeste. Mas, quando por acidente lá chegamos, ficamos próximos de uma verdade mais profunda acerca de nós próprios. Descobrimos que não estamos sós. Nunca estivemos.
Permita-me, o leitor, o seguinte. Já mergulhou sozinho no mar alto? Eu já. Muitas vezes. E é cada vez pior. Sinto um aperto no peito, uma angústia animal, uma náusea que não é física. Ali, entre o coração e o pensamento.
E já acampou? Não me refiro a montar tenda no campismo da Caparica, nem ir a um Festival meter umas pastilhas e sornar num iglu da Quechua. Refiro-me a calçar as botas, pegar num canivete e numa lanterna, e ir sozinho para a serra. Sem rede. Sem ninguém que lhe oiça os gritos.
Já fez isso? Não faça. Ou melhor: faça.
É aí que ele aparece. O medo. Aquela coisa que vem de dentro, de um sítio fechado. Sobretudo durante a noite. Por isso o espírito precisa de ser ocupado. Por isso precisa de coisas para fazer. De ouvir alguém a contar uma história. Ou de escrever num caderno. Dar um passeio, caçar borboletas, pintar uma aguarela, observar pássaros; qualquer coisa, senão enlouquece.
É daí que surgem os passatempos. Os antigos que não andavam tão alheados como hoje nós andamos, tinham de ocupar o espírito. Com selos, com música, com raquetes. As crianças sabem disso. Por isso brincam o tempo todo. São sábias, as crianças. Disfarçam-se. Inventam. Partem objectos valiosos. Tudo para não ouvirem os monstros debaixo da cama. Para não encararem o escuro. O grande escuro. Que é exactamente o mesmo que um homem adulto encontrará se for sozinho para a serra. Na ventania nos pinheiros, na imobilidade nos olhos de um pássaro nocturno, no crepitar de uma coisa qualquer. Nestas coisas que nos dizem que no princípio há medo. Medo de alguma coisa anterior a nós. Que nos contempla de longe. E de dentro.
A minha sogra diz-me que o que devemos recear é o “bicho-homem”. É uma observação razoável que não contradigo. Mas o medo irrazoável — de um som, um bicho, uma coisa sinistra— prova que temos connosco aquilo de que precisamos. Porque, ao detectar uma presença, adivinhamos o indetectável. Talvez mitológico, talvez religioso, talvez existencial. Seja o que for, está a olhar para nós. E confirma-nos que não somos o centro de coisa absolutamente nenhuma.
Nota: Em Agosto faço férias do Vale Era Verde. Se Deus quiser voltarei em Setembro. Quanto a si, caro leitor que, com simpatia e paciência, tem aturado estes meus textos, desejo-lhe um óptimo tempo estival. Olhe, vá acampar.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
Visao