O Currículo e o Território

Ainda leio os jornais. Ainda ligo a televisão. Ainda passeio pela cidade. E vejo Houllebecq em todo o lado. Na gentileza maquinal da solidão dos homens de hoje, silenciosa, mas roaz. Na ausência do compromisso, esse elo que outrora nos ligava uns aos outros. Na esterilidade voluntária; na pornografia omnipresente. Há trinta anos que Houllebecq nos diz o indesculpável. E há trinta anos que é exacto. Enquanto nos escancara o que resta dos intestinos da Europa, a Europa — Portugal, nós — vai demonstrando que o presente foi antecipado por si.
E o nosso presente, meus irmãos, abusa: cá estamos nós, outra vez, a falar de educação sexual. A polémica é a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. E o clamor, bem. O clamor é bestial. É sempre revelador quando o liberal — que passa a vida a dizer que o conservador só pensa em sexo — é o primeiro a dramatizar no tema: “repressão!”, “retrocesso!”, “grande preocupação!”, e, claro, “extrema-direita” (pim!).
Aparecem de todo o lado. Da Ordem dos Psicólogos, que sempre que ouve a palavra “sexo” arrebita as orelhas e vem logo catequisar. Faz parte. Numa sociedade sem fé, o psicólogo ocupa o papel de autoridade espiritual.
Apesar de o assunto ser currículos escolares, o problema, amigos, não é didáctico, mas metafísico. Porque não se trata de apagar palavras ou reorganizar tópicos: trata-se da ideia de homem que está subjacente. Toda a educação transmite uma visão moral do mundo, mesmo quando pretende não o fazer. Logo, a suposta neutralidade da educação sexual é uma ficção ideológica.
Uma mundivisão infiltra-se assim: vai-se colando ao discurso até soar natural. Scruton via isto com clareza: o problema não é “ensinar mal”, é ensinar o erro como verdade. Eu sou menos elegante: Não se reforma o irreformável. Encerra-se o assunto.
A educação sexual é uma máquina de cinismo. Fala dos corpos como se fossem conteúdos de Geografia: localização, utilidade, rendimento. É um programa de desintegração moral que rompe o vínculo entre desejo, responsabilidade e família. É, em suma, o nome que se arranjou para designar uma fase preparatória para a pornografia. Ponto.
É claro que estas minhas ideias são vistas como antiquadas. Até porque são mesmo. Mas não é isso que as torna perigosas. O que as torna perigosas é a sua força moral. Por isso é que, quando Rosa Monteiro —a ex-secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade e uma das autoras da Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania até aqui em práctica — diz que “O Governo tem um grande problema com a sexualidade e quer remeter o assunto novamente para o confessionário”, fá-lo com aquela malignidade de sugerir que quem vê o mundo de maneira diferente da sua sofre de patologia ou repressão. Assim, em três palavrinhas apenas, reduz quem pensa de outra maneira a uma espécie de fóssil do catolicismo. Nos debates contemporâneos, quem ousa pensar de outra maneira é forçado a justificar a própria criação antes de poder defender uma ideia que seja.
Há quem tente fundamentar o actual modelo com a lei de Março de 1984, que consagrava o direito à educação sexual e ao planeamento familiar. Mas esse diploma não previa doutrinas identitárias, nem linguagem codificada, nem imposições culturais. Falar de 1984 como se fosse a raiz de tudo isto é abusar da história. Aquele diploma pretendia proteger, não pretendia impor. Rebate-se, também, com o chavão: “não é uma questão ideológica, é civilizacional”, como se a civilização fosse neutra, como se uma ideia de civilização não contivesse já uma visão do homem, da liberdade, do corpo, do desejo. E depois invoca-se os números da gravidez adolescente como se fossem prova cabal da urgência pedagógica. O paradoxo grita: os que promovem a exposição precoce, o prazer imediato e a quebra de tabus, são os que apresentam a esterilidade voluntária como projecto de vida. É um progresso muito particular aquele que se mede, não pelos frutos, mas pela falta deles. Sim, falo de filhos.
Mas há quem não aceite. Há uma família em Famalicão, de apelido Mesquita Guimarães. A sua posição é desconfortável para todos porque revela o que quase ninguém quer dizer em voz alta: “isto não vos pertence”. Quando toda a gente ainda nem sabia o que dizer. Ou que podia dizer. Continuam a dizê-lo; agora com especial relevância, precisamente, porque o governo não é de esquerda.
São como justos do Antigo Testamento. Gente que resiste; no tempo, mas fora dele. Houllebecq tem personagens destas e concede-lhes uma benevolência singular. Por vezes, no meio do niilismo sufocante dos seus enredos, respira-se uma candura, uma pequena fé em pessoas assim. Pessoas ignoradas, ridicularizadas, pequenos milagres. Milagres mínimos.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
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Visao