<![CDATA[ O princípio do fim da presunção da inocência ]]>
![<![CDATA[ O princípio do fim da presunção da inocência ]]>](/_next/image?url=https%3A%2F%2Fcdn.sabado.pt%2Fimages%2F2025-09%2Fimg_1200x676uu2025-09-22-21-28-35-746511.png&w=1280&q=100)
Vivemos tempos apressados, no modo como a informação se produz e difunde, no modo como as notícias do dia se vão sobrepondo e, inevitavelmente, no modo como formamos as nossas convicções pessoais sobre os mais variados temas.
Num mundo tão acelerado, o tempo da justiça parece-nos intolerável na sua arrastada marcha.
Todavia, os processos demasiado rápidos de chegar à verdade devem gerar desconfiança.
As opiniões quando formadas sem contraditório, sem conhecer todos os lados da questão, serão – na justiça como na informação - tendencialmente desequilibradas.
Esse desequilíbrio produzirá injustiças.
Chegar à verdade num processo feito de regras e garantias de intervenção e de defesa, não será a mesma coisa que dizer, simplesmente, o que se acredita ser verdade ou que constitui a “sua” verdade, sem mais.
Temos vindo a ser confrontados com a proliferação de denúncias de assédio em ambiente escolar e académico.
Não me cabe tomar posição quanto aos factos, pois não tenho condições para aferir o que é verdade ou mentira e em que extensão. Porque também a verdade e a mentira raramente são absolutas. Elas misturam-se e formam, assim, teses ou versões.
O que quero salientar é que todos devemos admitir que chegar à verdade nestes casos é muito difícil. E será tanto mais complexo quanto mais o tempo passar sobre os factos que pretendamos esclarecer.
A prova degrada-se com o tempo. E isto tanto prejudica quem se queixa como quem se defende de imputações que considera, total ou parcialmente, falsas.
Se me acusarem hoje de ontem ter abordado uma pessoa, eu saberei, com muito mais propriedade, relatar o que de facto fiz nesse dia e dizer que, não, não abordei essa pessoa ou então, sim, abordei-a, mas estavam presentes esta e aquela pessoa que testemunharam como ocorreu o episódio.
Mas cinco, oito, ou dez anos depois, serei eu capaz de reconstituir o que se passou em determinado dia para mim completamente banal?
Eu, vítima ou eu suspeito, entenda-se.
É muito provável que não.
E essa dificuldade, admitamo-lo, pode levar a que qualquer das partes acrescente um ponto.
A própria capacidade do depoente é afetada. A credibilidade de alguém que diga recordar-se com precisão de factos muito remotos pode ser posta em causa. Mas a falta de memória precisa dos acontecimentos leva a que possamos não estar em condições de formular uma acusação.
Num processo orientado para a descoberta da verdade, pautado pelo respeito dos princípios estruturantes do processo penal, tais como o da legalidade da prova e o in dubio pro reo, haverá que analisar a versão da vítima e a versão do suspeito com a mesma minúcia. Haverá que produzir a prova da acusação e a prova da defesa.
Exigir-se-á algo que não se exige em fóruns de discussão e mera partilha de experiências: A vítima deve identificar-se no processo, mesmo que, publicamente, a sua identidade seja preservada. Os factos que ela narra devem, para poder conformar uma acusação, conter um alto grau de concretização, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação das práticas assacadas ao suspeito.
Isto é assim para que o suspeito possa defender-se cabalmente.
Entende-se que essa defesa não é possível quando as imputações não contêm um grau de concretização adequado.
Por isso se considera que, em qualquer imputação penal, a alegação factual não pode ser facilitada pelo uso de fórmulas vagas, imprecisas, nebulosas, difusas, obscuras.
E, no entanto, uma imputação vaga ou imprecisa pode destruir e destrói mesmo uma pessoa. Leva- a perder a reputação, a credibilidade, o emprego. Torna-a odiosa aos olhos de muitos, restando-lhe poucos ou nenhuns meios de defesa contra esse estado de coisas.
Quando quem acusa no espaço público não se identifica, deveremos ter muita reserva na aceitação do que se alega. Afinal não poderá ser responsabilizado por aquilo que disse, caso se prove que é mentira.
E isso vulnerabiliza o visado por essa acusação. Devemos assumir isto sem peias.
Não podemos ficar reféns do discurso, hoje crescente, segundo o qual quem se diz vítima merece mais crédito do que aquele que é suspeito.
Não. Isso inverte o ónus da prova que é de quem acusa, não de quem se defende.
É deste pressuposto que devemos partir e não do inverso.
Quem acusa e não apresenta queixa, não se submete às regras do processo penal para a descoberta da verdade e por isso fica isenta de cumprir essas regras de concretização factual e de prova.
Os resultados a que nos conduz o sistema de justiça, com todos os seus valores e direitos nem sempre são de fácil digestão.
Quando um crime prescreve, surgem clamores de que a justiça ficou por fazer.
Quando um tribunal absolve um arguido por falta de prova, a sensação é de que o criminoso escapou.
O que é que estas situações têm em comum com aquelas em que o arguido é condenado?
A resposta é simples: Em todas elas fez-se justiça.
Isto atordoa e confunde. “Justiça, como, se não houve culpados?”
Justiça nessa aceção segundo a qual os vários direitos e interesses em conflito se conjugam sem se aniquilarem.
O sistema de justiça é moldado ao longo do tempo por um conjunto de valores que elegemos como essenciais.
A presunção da inocência, o princípio de que ao arguido se asseguram todas as garantias de defesa, o prazo para apresentar queixa, o prazo para o Estado exercer o seu poder punitivo, são apenas algumas das regras vigentes que por vezes têm do outro lado o direito da vítima de um crime a intervir no processo, fazendo valer o seu próprio interesse punitivo e obtendo uma indeminização pelos danos que lhe foram causados.
Criar um ecossistema onde estes valores em conflito sobrevivam sem se eliminarem é um verdadeiro desafio. Um desafio de sociedades que queiram ser de Direito, democráticas.
Pode parecer inaceitável que, em certos casos, o próprio Estado reconheça que já não lhe é permitido perseguir criminalmente alguém que tenha cometido um crime.
Mas é tão necessária essa autolimitação do Estado relativamente ao seu poder punitivo como que a sua ação ocorra em tempo útil.
Com o passar de um longo período sobre a prática de um crime, ensina Figueiredo Dias, a censura comunitária traduzida no juízo de culpa esbate-se, se não chega mesmo a desaparecer; as exigências de prevenção especial, porventura muito fortes logo a seguir ao cometimento do facto, tornam-se progressivamente sem sentido e podem mesmo falhar completamente os seus objetivos de reintegração do criminoso na sociedade; já não poderemos estabilizar as expectativas comunitárias, já apaziguadas ou definitivamente frustradas e, por último, torna-se mais difícil e de resultados duvidosos a investigação (e a consequente prova) do facto e, em particular, da culpa do agente, elevando a cotas insuportáveis o perigo de erros judiciários.
Este pensamento – que não é novo – mantém o vigor da sua lógica e não deve ser destruído à conta de impulsos sociais que traduzem esse desejo muito primário e humano de castigar.
sabado