Gorbachev mudou o mundo sem querer

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Gorbachev mudou o mundo sem querer

Gorbachev mudou o mundo sem querer

Há 40 anos, Mikhail Gorbachev chegava ao Poder. Analista político, ex-deputado e ex-eurodeputado, historiador, biógrafo “não autorizado” de Álvaro Cunhal – e biógrafo não autorizado do próprio PCP… –, José Pacheco Pereira, 76 anos, conheceu o “grande homem”, participando em dois debates com ele. “Até nos pegámos”, recorda o antigo dirigente do PSD. Para Pacheco Pereira, o líder soviético foi uma das personagens mais influentes do século XX, mas não deixa de ser uma figura trágica, por, ao mudar o mundo, ter obtido um resultado que não desejava.

Conheceu Mikhail Gorbachev pessoalmente. Que memórias guarda?

Tive duas aproximações ao mundo de Gorbachev. Fui presidente de um comité da Assembleia da NATO que apanhou o melhor período possível, do ponto de vista da História, para poder assistir a tudo em direto e ao vivo. Visitei a Rússia, a Bielorrússia e outros países ali à volta, no período do fim do comunismo e início das independências das ex-repúblicas soviéticas. Costumo dizer que tive o privilégio de assistir a duas revoluções: o 25 de Abril e o fim do comunismo…

Estamos a falar de um período entre finais de 1989 e finais de 1991…

Exatamente. É o período em que a URSS participa na chamada Partnership for Peace [Parceria para a Paz], e até participava em manobras da NATO. Uma real aproximação ao Ocidente. E tive conversas com comandantes militares, uma visita ao Conselho de Segurança da URSS, o local com mais segurança que alguma vez vi. Pude ver coisas únicas, na Checoslováquia, na Bulgária, nos Países Bálticos. Num momento em que tudo isto era muito incidental. Apanhei o Gorbachev e o Ieltsin. Uma experiência única.

Trabalho duro O armazém Ephemera de Pacheco Pereira, em Santa Iria da Azoia, conserva 30% do espólio do arquivo. Ainda assim, vários amplos andares a abarrotar. Até tem acordos com serviços de Higiene Urbana para detetar e recuperar do lixo espólios dados como perdidos…

E Gorbachev?

Já afastado do poder, Gorbachev aceitou participar em debates. E veio a Portugal. No primeiro debate, esteve com a equipa do antigo programa da SIC, Terça à Noite, comigo, o António Barreto e o Miguel Sousa Tavares. Foi uma conversa relativamente pacífica. Mas, da segunda vez, em que Mário Soares já teve um papel, já foi mais complicado, porque eu “peguei-me” com o Gorbachev. Ele irritava-se facilmente…

Mas porquê?

Os dirigentes soviéticos não estavam habituados a ser contrariados. E eu questionei-o com algumas perguntas… fora da caixa, digamos assim. Tinham que ver com o papel dele, com o que ele queria manter do socialismo e como foi ultrapassado pelos acontecimentos… E tivemos ali uma discussão um bocado azeda. Mas sempre num registo educado! Essa discussão é significativa para perceber o Gorbachev. Ele tem um papel histórico fundamental… malgré lui. E ele não queria aquele resultado… Gorbachev concebera a Perestroika e a Glasnost como um processo para preservar um certo statu quo.

O que acaba por explicar um pouco a sua queda… mas ele era um pacifista? Queria, genuinamente, a paz?

Ele, genuinamente, queria modernizar o sistema socialista, sem o pôr em causa. Foi isso que ele quis fazer com a Perestroika e com a Glasnost, aquilo a que o Álvaro Cunhal veio a chamar o “partido com paredes de vidro”. Uma maior transparência no exercício do poder, mas um processo interior do socialismo e do poder soviético. Ele nunca quis dissolver a URSS.

Sim, foi o Ieltsin que fez isso, em boa parte, nas costas de Gorbachev.

Exatamente. E ele já não estava no poder quando terminou o prazo de validade do acordo de 1921, para a constituição da URSS, com as várias repúblicas, e que tinha de ser renovado em 1991. E não renovaram. Muitos conflitos que surgiram nessa altura deveram-se também a isso. Por exemplo, a Chechénia não era signatária, fazia parte da Federação Russa, mas também quis a independência. Isso nunca foi aceite pelos russos.

Abriu-se uma caixa de Pandora com os nacionalismos e as tensões étnicas a virem ao de cima, como no Nagorno-Karabakh…

Sim, a Geórgia (com a Abecásia), a Ossétia… Quando o poder central é forte, os impérios mantêm-se unidos. Mas, quando se tira a tampa, vem tudo ao de cima. E Gorbachev pensou, erradamente, que conseguia manter o controlo. Ele só queria renovar o PCUS, aumentar as liberdades, mas pensava que era tudo um processo interno, que controlaria. Tentativas que já tinham sido ensaiadas pelo Alexander Dubcek, na Checoslováquia [1968, a Primavera de Praga] e pelo Tito, na Jugoslávia. Só que, com isto, Gorbachev desmantelou o movimento comunista internacional.

PARA LER NA VISÃO BIOGRAFIAEsta entrevista com Pacheco Pereira foi publicada na nova edição da VISÃO Biografia, que se encontra nas bancas. Uma edição especial sobre a vida e obra de Mikhail Gorbachev

E, com a doutrina Sinatra [o “My Way”, ou seja, cada país era livre de seguir o próprio destino, sem a tutela soviética], tirou o tapete aos dirigentes associados da Europa do Leste…

Isso mesmo. Portanto, teve um impacto enorme – mas, em grande parte, involuntário.

Mas só seria possível com Gorbachev, ou o que aconteceu à URSS tinha de suceder, fosse quem fosse o dirigente?

Isso tem de perguntar a um historiador o que poderia ter sido…

O que pergunto é se a figura, em si, terá sido fundamental. O fator pessoal, de personalidade…

A certa altura, tornou-se muito óbvio que não era possível manter a competição com a NATO e com o Ocidente. A competição militar, sobretudo, em termos tecnológicos. E também no campo da economia. Havia a consciência de que não era possível continuar assim. Gorbachev teve essa consciência, quando chegou ao poder de um país falido. E tinha noção do aumento das tensões internas, entre a população. Tinha havido uma certa melhoria do poder de compra, e as pessoas saíam de casa com um saco de plástico, para comprar o que conseguissem apanhar. Até tinham dinheiro, só que não havia produtos.

Mas aí é que está… ele percebeu isso e quis fazer qualquer coisa. Os outros, o Brejnev, o Politburo, não! Teve de ser ele! Porquê? Tem que ver com a sua geração?

Tem. Ele era muito mais novo. Não estava dominado pela sombra da II Guerra Mundial [era criança em 1941, ano da invasão nazi da URSS]. Os dirigentes anteriores eram muito influenciados por essa memória. É outra geração. E não é um ortodoxo. Tem uma carreira no partido, mas ele não se esgota na carreira burocrática.

Podemos dizer que, quando começou a ter contactos próximos com os líderes ocidentais, quando foi reconhecido como um igual e quando viu a popularidade de que gozava no Ocidente, ele se deixou deslumbrar?

Claro. Estes homens com grande poder também são muito vaidosos. E esse contacto deu-lhe mundo. Mas, mal ele assumiu esse mundo, perdeu poder. Veio depois o Ieltsin, um político de 5.ª categoria, mas que deu a uma nova nomenclatura aquilo que Gorbachev nunca deu. E que distribuiu os bens russos pela família e pela clientela oligárquica. E, depois, veio o Putin, que deu algo que os russos apreciaram, e que foi lei e ordem.

O império soviético acaba sem um único tiro trocado com o adversário da Guerra Fria, o Ocidente. Se Gorbachev tivesse a mentalidade da fera ferida, num beco sem saída, poderia dizer: “Ok, a URSS cai, mas vai levar uns tantos consigo.” E ele não teve essa postura…

Não a teve, de facto. Embora isso tenha surgido em setores muçulmanos, na esfera da URSS. Mas ele não provocou uma guerra civil nem nenhum conflito com o Ocidente.

E o Ocidente, nomeadamente os EUA, estiveram à altura dessa atitude de Gorbachev? Ele pediu desesperadamente apoio económico, que lhe foi prometido, mas que nunca chegou. O Ocidente também falhou?

No arquivo Ephemera Cartazes do período revolucionário de 1974-75 são algumas das preciosidades mais curiosas do vasto espólio cuidado pelas equipas de Pacheco Pereira

Também. Porque o Ocidente tinha consciência da fragilidade do poder de Gorbachev. E aqueles regimes põem o poder militar à frente da economia.

Mas se a URSS tivesse tido uma espécie de plano Marshall, não teria sido melhor para todos? Ele é muito prejudicado pelo agravamento da situação económica. Não teria sido mais inteligente tê-lo apoiado, no plano económico?

Era difícil. O sistema económico soviético era perverso. Com muitas estruturas de controlo a partir do Kremlin, mas com unidades industriais espalhadas pelas repúblicas. Muito disseminadas. Onde havia o problema dos nacionalismos. Pouca unidade, a partir do momento em que há uma erosão do poder. A dissolução de uma economia planificada e a sua substituição por uma economia de mercado é muito complicada. E as independências quebraram as cadeias de produção. A produção industrial colapsou. Mesmo a produção militar.

O Deng Xiaoping chegou a aconselhar os soviéticos a seguir o modelo chinês: abrir a economia mantendo um Estado central e um partido fortes. Teria sido possível?

Era difícil. O Deng Xiaoping percebeu que, querendo manter um poder centralizado forte, abrindo a economia, o grande risco era a corrupção. E os chineses tomaram medidas draconianas, aplicando a pena de morte em casos de corrupção. E isso nunca foi possível na Rússia. Que, ainda por cima, tinha movimentos nacionalistas fortes. E a área de influência da URSS, do pacto de Varsóvia, também estava em ebulição. Depois, a tentativa de renovar o PCUS falha. E o fim do Tratado da União tirou capacidade imperial à URSS. Esses dois fatores combinados acabaram por ser a obra de Gorbachev, mas uma obra que ele não desejava que desse este resultado.

E como é que o Ocidente percecionou a figura de Gorbachev? Da surpresa à desconfiança, depois, ao alvoroço, à euforia, à inquietação?

Tudo isso um pouco. Tudo junto. Mas ele tornou-se uma personagem central e está entre a meia dúzia de figuras mais influentes do século XX. Terá falhado? Na História, qualquer plano muito bem elaborado tende a falhar. Porque há ruído. É da natureza humana e da natureza da História.

Gorbachev acabou por ser uma figura trágica?

Trágica… é como o Rei Lear… Sim, pode ser interpretado como uma figura trágica. Queria fazer uma coisa, saiu-lhe outra, e, ao sair-lhe outra, mudou o mundo.

E que impacto teve Gorbachev no PCP?

Originalmente, Álvaro Cunhal, que, ao contrário do que se pensa, durante toda a sua vida política, sempre apoiou a liberalização e reformas no sistema, recebeu-o com expectativa. Há uma simpatia inicial que é genuína. Mas Cunhal, tendo essa postura, só ia até ao ponto em que se pusesse em causa o poder central. Cunhal até tinha começado por apreciar as reformas de Dubcek, na Checoslováquia, mas, passado um certo limite, foi o primeiro a apoiar a intervenção dos tanques soviéticos em Praga. Ele fica sempre do lado da União Soviética. Agora, que temos no arquivo Ephemera muitos espólios de militantes e funcionários do PCP, percebemos o impacto muito negativo que as políticas de Gorbachev tiveram nos comunistas portugueses. A ansiedade, a preocupação, a desorientação. As dúvidas sobre o futuro da URSS e sobre o futuro do socialismo. Há casos de funcionários do PCUS que vêm cá explicar a Perestroika aos camaradas portugueses, temos o espólio de um funcionário que vai à URSS, tomando notas de tudo… E há uma enorme desconfiança e uma enorme instabilidade. E o Cunhal morre amargurado, porque percebe que tudo aquilo tinha acabado.

Era o ruir de um projeto de vida…

Ele achava que as reformas eram necessárias. Mas o que afeta a União Soviética afeta o socialismo.

Entretanto, há consequências práticas e diretas no PCP.

Há. A certa altura, para atacar Gorbachev, o Ieltsin revela os dinheiros que eram distribuídos pelo PCUS. E ficamos a saber, em detalhe, o que recebia o PCP dos soviéticos. Determinado pelo Departamento Internacional do Politburo. E o dinheiro que o PCP recebia deixou de vir…

E há as dissidências…

Cunhal alarma-se, não tanto por aquelas dissidências de intelectuais, ou coisa do género, mas quando uma cisão de 500 militantes atinge os aparelhos ligados à URSS. O aparelho de segurança, os aparelhos militares… Porque ele sabia que, neste ponto, a cisão tinha tido uma origem russa. Era o PCUS a tirar o tapete ao PCP.

Mas o PCP acabou por revelar uma resiliência que outros, por essa Europa fora, não revelaram.

Muitos dos PC europeus eram representações, no Ocidente, do PCUS. Mas o PCP tem uma base de apoio nacional e um patriotismo especial. O PC português, o grego, o cipriota e o finlandês. Eram partidos com uma base social ligada a setores muito antiquados da economia. Mas isso não impediu uma crise mundial do comunismo. Um desastre. Desapareceu quase tudo.

Se lhe pedir um título para esta revista. Podemos escrever o quê? “Gorbachev, o…”

É difícil… Tem de ter um aspeto positivo e um aspeto negativo… No fundo é “o reformador vítima das reformas”. “O homem que mudou o mundo sem querer.”

Ou seja, não era bem isto que ele tinha pensado.

Não era, de todo.

Visao

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