Eles não são todos iguais: Vão e votem

Há um jornalista espanhol do El Mundo que quer que lhe explique os últimos desenvolvimentos da política nacional. Falámos há um ano e quer perceber porque é que estamos outra vez à beira de eleições. Sento-me numa poltrona, enquanto me preparo para começar a falar. Por onde começar? Pois, pelo início. E lá começo eu a desfiar um novelo que começou com uma notícia que parecia ser sobre uma coisa, mas afinal era sobre outra. O meu castelhano atrapalha-se, mas o que mais me emperra a língua são as voltas que a história dá, cheias de pormenores que começam por não parecer assim tão importantes, mas que, como numa boa telenovela, se vêm depois a revelar essenciais para perceber o enredo. “Es increíble”, vai-me dizendo a espaços, enquanto me pergunta se isto ou aquilo já foi noticiado.
Vou-lhe dizendo que sim e encho-o de links e recortes de jornais. Porque à medida que falo e esbarro com a incredulidade do meu camarada ibérico, percebo que tenho de mostrar provas. Preciso de demonstrar a cada passo que o que conto não é fruto da imaginação prodigiosa de um argumentista inspirado, mas o retrato do que se passa na política portuguesa, com as suas personagens inusitadas, golpes de teatro, escândalos que passam quase despercebidos e pequenos dramas que tomam proporções épicas.
Viver no centro de Lisboa fez-me perder a paciência para estrangeiros. Não é por mal. É só que se torna muito repetitivo tentar falar uma e outra vez das mesmas coisas, explicar o que me parece óbvio, evitar piadas que não farão efeito por falta de referências comuns. Mas há uma espécie de epifania nesta conversa que servirá de matéria para o El Mundo.
Estar demasiado perto das coisas desfoca-nos o olhar. Ajuda dar uns passos para trás, até ao outro lado da fronteira. E tentar perceber como é que as coisas parecem quando ganhamos distância. Não me interpretem mal. Uma das frases que mais abomino é o “isto só em Portugal”. E, sim eu sei, não há nada de mais português do que essa expressão de provincianismo nacional. E nem se quer me estou a tentar livrar dela.
Estou apenas a constatar a que soa o que conto, quando o conto de um só fôlego a quem está a ouvir pela primeira vez o que a mim já me parece velho. A intimidade com os temas distorce-os.
Para combater a incredulidade do meu ouvinte, junto-lhe números, fontes, relatórios. Sinto-me a fazer um retrato do meu país. E percebo que o que lhe digo não joga com a imagem que tinha. Somos melhor a vender-nos do que a dizer a verdade. E o que será a verdade?
Recuso-me a falar em nome do “povo” ou dos “portugueses” ou das “pessoas”, ou lá como é que se diz agora. Sei lá eu o que querem o povo ou os portugueses ou as pessoas.
O que eu sei e alguns parecem ter-se esquecido é que no boletim de voto não há alíneas, letras pequenas, escolhas múltiplas e lugar para escrever observações. Outros dirão, depois de contados os votos, que o povo, os portugueses ou as pessoas quiseram dizer isto ou aquilo, enviar este ou aquele sinal, deixar este ou o outro recado.
O que eu sei e alguns parecem ter-se esquecido é que no boletim de voto só dá para fazer uma cruz. E não dá para saber como vota quem está nas outras cabines. Não dá para combinar, ora vamos lá todos dar uma “maioria absoluta” ou uma “maioria de diálogo” ou uma “maioria maior”. E ainda bem.
O que eu acho e a alguns não dá jeito nenhum que se lembre é que cada voto conta e todos contam o mesmo. Só não contam os que não estão nas urnas, mas ficam ao balcão do café a lamentar os resultados no dia seguinte.
O que eu acho e a alguns não dá jeito nenhum que se lembre é que cada um deve votar no projeto com que mais se identifica, no país que imagina, no mundo em que gostava de viver, nas ideias que mais o defendem. Não é o sorriso simpático, o ar engraçado, o jeito para a dança ou a boa figura que se faz num desporto que nos vai resolver a vida.
Sim, eu sei que há sempre quem diga “eu cá voto em pessoas”. E até percebo que o digam. Mas pensem bem aonde é que isso nos levou. E pensem bem, porque esta coisa de votar parece velha e garantida, mas se fosse uma pessoa ainda podia ter andado na escola com a maioria dos cabeças de listas dos partidos que agora vão a votos.
Olhem bem para o papel que têm à frente. Esse boletim de voto custou muito a chegar-vos às mãos. Houve gente a ser torturada e a morrer, a viver escondida e perseguida, para que hoje pudessem pôr uma cruz nesse papelinho. É um papel frágil, que não vos dá tudo o que prometeu. Mas é nele que se podem escrever todas as promessas, todas as esperanças, toda a imaginação de que se pode fazer o futuro. Não o deixem em branco.
Vão e votem. Já há demasiadas coisas na vida em que não têm escolha. Aproveitem. E não se venham queixar de que estão fartos e cansados, de que eles são todos iguais, de que não vale a pena. Quando baixamos os braços, aparece sempre quem venha escolher por nós. E esses serão ainda mais iguais do que aqueles de quem agora se querem dizer diferentes.
Visao