[Coluna] O Brasil e a construção de um eterno 14 de maio
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Em 13 de maio de 1888 era assinada a Lei Áurea. Mas o fim da escravidão não significou igualdade. Em 14 de maio já se articulava a política que manteve o racismo na vida em sociedade. A liberdade era para ser precária.Na manhã do dia 14 de maio de 1888, o jornal carioca Gazeta de Notícias estampou a manchete: Brazil Livre! Logo abaixo, era reproduzido integralmente o texto da Lei 3353 sancionada pela princesa Isabel que declarava extinta a escravidão no Brasil a partir de 13 de maio de 1888. Era a Lei Áurea.
Ainda na primeira página do jornal, José do Patrocinio, jornalista e um dos maiores e mais importantes abolicionistas brasileiros, publicava um artigo entusiasmado, no qual, a certa altura, escrevia: "não há mais escravos: todos são livres, todos são iguais; todos têm aberta diante de si uma carreira por onde podem avançar até onde seus talentos permitirem”.
Havia uma razão importante para tamanha euforia: o território que mais recebera africanos escravizados durante os 350 anos de vigência do tráfico transatlântico, era o último país das Américas a abolir a escravidão.
A comoção foi imensa e avançou república adentro. E por muitos anos, como bem nos mostra o livro As festas da abolição no Rio de Janeiro (1888-1908), da historiadora Renata Figueiredo Moraes, o 13 de maio foi uma data comemorada com pompa e circunstância, marcando o calendário oficial do país, e tendo seus sentidos e significados mudados com o tempo.
Fim da escravidão não significou igualdade
No entanto, a esperança de uma vida de liberdade e igualdade não trilhou os caminhos ansiados por José do Patrocínio. Ele mesmo, viveu na pele um 14 de maio que não se cumpriu na sua inteireza: um dos nomes mais importantes da luta abolicionista morreu pobre e esquecido em 1905 pelas autoridades de um Brasil que aprendia a andar na vida republicana. E pode parecer óbvio, mas é importante dizer: José do Patrocínio era um homem negro.
O fato é que o fim da escravidão não significou a liberdade e igualdade entre todos. Ao contrário. O que se desenrolou a partir daquele 14 de maio foi uma articulação política que mesmo mudando parte de seu vocabulário político, manteve o racismo como modus operandi da vida em sociedade.
Haja vista que a instituição da República, em 1889, foi marcada pela pactuação daqueles ex-senhores de escravizados que se sentiram traídos pelo governo imperial ter promulgado uma abolição que não previa nenhum tipo de indenização.
Se a família real virou as costas para seus interesses, eles fariam o mesmo: e não só apoiaram, como também estiveram à frente do projeto republicano vitorioso que, por muito tempo, desejou fazer com que o Brasil fosse um país apenas de gente branca.
O Brasil pós-13 de maio apostava na derrota negra
O sopro de mudança do 13 de maio foi pouco mais do que uma rajada de vento. E a despeito de uma série de tensões e disputas políticas, o que vimos foi a construção de um Brasil republicano, cujo Estado nacional e suas elites prometiam uma igualdade nunca alcançada, e que jogavam nas costas da população negra toda a responsabilidade em trilhar seus próprios caminhos, criando uma série de estratégias para inviabilizar que seus talentos pudessem, de fato, determinar suas vidas.
Na verdade, o vimos foi a construção de um país no qual talento e pessoas negras pareciam não poder andar juntos. Salvo raros casos, o Brasil do 14 de maio apostava alto na derrota negra.
A liberdade era para ser precária. E para garantir que assim fosse, por muito tempo a principal politica pública para a promoção de uma sociedade mais justa e igualitária foi não ter política pública alguma. Claro que isso nunca foi dito dessa maneira. O que se criou foi uma ideia mentirosa de que éramos uma nação harmoniosamente miscigenada, que de algum modo se assemelhava ao sonho sonhado por Patrocínio. Mas nunca foi assim, nem antes, nem depois daquele 13 de maio.
Ainda estamos longe da igualdade
Cento e trinta e sete anos se passaram. Mais de 5 gerações já viveram num Brasil sem escravidão. E estamos muito longe de uma realidade que testemunhe a igualdade de oportunidade entre negros e brancos. Basta olharmos para os números, sobretudo aqueles que retratam o que temos de pior: índices de evasão escolar, diferenças salariais entre negros e brancos, acesso à saúde, a cor de quem está na linha da miséria, ou os números da segurança pública que reforçam, todos o dia e o dia todo, que jovens negros são descartáveis desde que a escravidão acabou.
E a perversidade de tudo isso, é que as raízes dessa desigualdade ficaram todas "no período da escravidão”, como se, de fato, o período pós-abolição tivesse sido uma espécie de alecrim dourado da história brasileira.
A escravidão foi uma instituição nefasta, que organizou mais de 300 anos da história brasileira. Mas a República não redimiu nada, simplesmente, porque não quis.
Porque o racismo silencioso era uma herança bem vinda, que azeitaria as desigualdades, lhes dando uma cara pálida de normalidade, que faz com quem não haja nenhuma comoção com o fato de ações policiais de São Paulo terem matado mais um jovem negro, ou que numa das cidades com maior número de chacinas contra a população negra e periférica, a Câmara Municipal gaste seu tempo e o dinheiro dos contribuintes debatendo e aprovando leis sobre bonecos.
O fim da escravidão deve ser celebrado, sem dúvida. Sobretudo uma celebração crítica, que nos permita compreender que o Abolicionismo foi nosso primeiro grande movimento social, e que houve um protagonismo negro e popular nesse movimento. Mas não podemos nos esquecer que vivemos num Estado em que a promessa daquele 14 de maio ainda não se cumpriu, e parte do Brasil tentou transformar a abolição num exasperante compasso de espera.
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.
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