Angola não é Gaza. Teve azar

Os recentes tumultos em Angola mereceram pouco ou nenhum destaque em Portugal. Ninguém por cá se preocupa verdadeiramente com o que se passa em Luanda, em Maputo ou em Bissau. A CPLP é uma coleção de Estados falhados – incluindo o nosso, agarrado por pinças à Europa, como que para nos lembrar que o nosso nível de vida está cada vez mais distante dos países europeus e cada vez mais próximo de África, que começa logo ali depois do Algarve.
A última revolta popular em Angola – iniciada como uma greve de taxistas – foi, na verdade, a explosão inevitável de um povo exaurido pela fome, pela doença e pela desesperança. O rastilho foi o aumento do preço da gasolina, mas a bomba que rebentou nas ruas é o retrato de um país falido. Tudo isto aconteceu uma semana depois da visita do presidente João Lourenço a Portugal, recebido com toda a pompa e circunstância e com a encenação habitual: discursos polidos, bandeirinhas nas lapelas, promessas de investimento, jantares oficiais com a nossa elite política e empresarial, num déjà-vu dos tempos dourados do clã Dos Santos.
Esta foi apenas uma das mais de 120 viagens oficiais, cujos destinos mais frequentes não incluem Portugal, mas sim os Estados Unidos, Espanha, Namíbia e Emirados. As comitivas presidenciais incluem uma corte que vai de 70 a 150 pessoas e a estimativa de custo destas deslocações já ultrapassa os mil milhões. Curiosamente, nenhuma destas viagens partiu do novo aeroporto de Luanda, esse monumento ao desperdício numa nação onde o setor da aviação civil definha: as estatísticas de passageiros, de rotas e de companhias aéreas caem ano após ano e até o voo especial para repatriar cidadãos angolanos que fugiam da guerra na Ucrânia regressou praticamente vazio! Dos quase 300 angolanos registados à chegada a Varsóvia, só 30 aceitaram voltar para casa… fugir de uma guerra e preferir ficar no estrangeiro diz muito sobre o país de origem desses refugiados.
O pouco que nos foi dado a ver nas ruas de Luanda foi só isso: um povo exausto de viver sem dignidade. Mas estas imagens não chocaram, não foram manchete e, pior ainda, não comoveram. Talvez nos tenhamos habituado demasiado a ver africanos a sofrer. Primeiro foi a escravatura; agora é a miséria ou o afogamento numa embarcação qualquer no Mediterrâneo. Protestar por comida, por saúde, por educação ou por uma vida minimamente decente num dos países mais ricos de África não mobiliza, nem gera hashtags ou indignação internacional.
Talvez o problema seja de marketing e, por isso, deixo aqui a sugestão: se os angolanos elegerem primeiro um governo de judeus e só depois vierem para a rua protestar, talvez assim consigam atenção mediática global. Assim como um certo racismo subcutâneo nos permite olhar para as ruas de Luanda, de Maputo ou de Bissau com uma natural indiferença mascarada de respeito pelas “soberanias”, o antissemitismo, disfarçado de uma causa nobre qualquer, move mundos e culpa regimes, países e entidades.
Em plena discussão sobre o reconhecimento do Estado da Palestina – numa causa que é complexa e cheia de nuances – gostaria de ver Portugal a reconhecer primeiro e com a mesma energia o estado real de Angola: um país com instituições esvaziadas, recursos saqueados e uma elite que vive como uma oligarquia extrativista, mantendo o povo refém de um presente sem pão e de um futuro sem esperança.
Quando Angola for Gaza, talvez os ativistas europeus da moral seletiva se indignem; talvez organizem marchas; talvez publiquem posts solidários; talvez façam vídeos com lágrimas nos olhos. Quando Angola for Gaza, talvez então Angola possa prosperar.
Docente em Sistemas de Transporte e consultor em aviação, aeroportos e turismo
sapo