Um novo mapa 3D permite, pela primeira vez, "voar" ao redor, através e acima das nuvens de poeira e gás onde as estrelas nascem.

Em um avanço sem precedentes na compreensão da nossa própria galáxia, uma equipe internacional de cientistas utilizou dados do telescópio espacial europeu Gaia para criar o mapa tridimensional mais preciso até o momento das regiões de formação estelar em nossa região da Via Láctea — vastas nuvens de poeira e gás que obscurecem os "nascimentos" que ocorrem continuamente dentro delas. O trabalho acaba de ser publicado em dois artigos separados no periódico Monthly Notices of the Royal Astronomical Society ( aqui e aqui ).
Até agora, a tarefa de mapear e estudar esses "centros estelares" era semelhante a tentar ver o formato de uma cidade olhando através de uma densa neblina. E embora os astrônomos tenham conseguido ter uma ideia de como essas nebulosas se parecem da nossa perspectiva, elas careciam completamente da terceira dimensão: a profundidade. Ou seja, não sabiam a que distância estavam, qual a sua extensão ou como se distribuíam no espaço — informações sem as quais é impossível compreender completamente as interações entre as estrelas que nascem e o ambiente ao seu redor.
Mas é para isso que serve o Gaia , uma missão da Agência Espacial Europeia (ESA) que, entre dezembro de 2013 e março de 2025, vem coletando dados sobre a posição, o movimento e a velocidade de mais de um bilhão de estrelas, com o objetivo de criar um mapa 3D detalhado da nossa região da galáxia.
Mas isso não é tudo. Embora o Gaia não consiga "ver" diretamente as nuvens onde nascem novas estrelas, ele consegue medir com precisão a chamada "extinção" estelar, um fenômeno que ocorre quando a luz de uma estrela é ofuscada ou "apagada" pelo material interestelar que se interpõe em seu caminho. E foi exatamente isso que os pesquisadores fizeram desta vez.
Se dirigirmos à noite em uma estrada com neblina, as luzes da cidade ao longe parecerão mais fracas e, às vezes, até avermelhadas, já que a neblina espalha a luz azul dos faróis com mais eficiência do que a luz vermelha. Algo semelhante acontece no espaço: a poeira cósmica bloqueia a luz azul mais do que a vermelha, fazendo com que as estrelas pareçam mais vermelhas do que realmente são. Medindo essa atenuação da luz, é possível determinar com relativa precisão a quantidade de poeira existente em uma determinada direção e distância. E é exatamente isso que a Gaia consegue fazer, e com uma precisão sem precedentes.
Especificamente, o novo mapa 3D das regiões de formação estelar próximas a nós foi construído a partir de observações de 44 milhões de estrelas "comuns" e 87 estrelas do tipo O, que são as verdadeiras "estrelas" da história. Essas são estrelas extremamente raras no Universo, jovens, massivas e tão incrivelmente quentes e luminosas que brilham intensamente na parte ultravioleta do espectro eletromagnético. Sua luz é tão energética que é capaz de ionizar o gás hidrogênio que as cerca, ou seja, retirar elétrons dos átomos e transformar o gás neutro em uma sopa de partículas carregadas.
Esta emissão de hidrogênio ionizado é, por si só, um sinal inequívoco de que um verdadeiro frenesi de nascimento estelar está ocorrendo nesta região. Embora outros telescópios tenham nos permitido obter magníficas imagens bidimensionais dessas nebulosas, como a Nebulosa do Loop de Barnard ou a Nebulosa de Órion, nunca antes tivemos uma visão tridimensional tão detalhada. O novo mapa se estende por até 4.000 anos-luz do Sol, cobrindo uma parte significativa da nossa vizinhança galáctica.
"Gaia", explica Lewis McCallum, astrônomo da Universidade de St. Andrews, no Reino Unido, e principal autor de ambos os artigos, "nos dá a primeira visão precisa de como seria nossa parte da Via Láctea vista de cima".
Graças ao mapeamento tridimensional e aos dados de movimento estelar fornecidos pelo Gaia, os cientistas conseguiram criar uma representação quase cinematográfica de como essas regiões seriam vistas de uma perspectiva externa — algo com que até agora só podíamos sonhar. O modelo também corresponde perfeitamente às observações de outros telescópios, aumentando a confiança em sua precisão.
O resultado é um mapa espetacular que inclui vistas tridimensionais de nebulosas icônicas, como a Nebulosa Gum (um remanescente de supernova a cerca de 1.300 anos-luz da Terra), a Nebulosa América do Norte (NGC 7000, a 1.800 anos-luz da Terra e assim chamada porque seu perfil lembra o daquele continente), a Nebulosa Califórnia (NGC 1499, lar da enorme estrela do tipo 'O' Xi Persei) e a gigantesca superbolha Órion-Eridanus.
Agora, pela primeira vez, os astrônomos podem voar ao redor, através e acima de qualquer uma dessas regiões, o que lhes permite estudar sua estrutura, seus fluxos de gás e poeira e sua relação com as estrelas que nascem dentro delas.
Mas talvez a descoberta mais intrigante deste novo mapa seja a confirmação da existência de uma gigantesca "cavidade", uma espécie de "bolha" de espaço vazio (que pode ser vista no segundo 4 do vídeo em anexo) e que, segundo a pesquisadora da ESA, Sasha Zeegers, pode ter se formado à medida que a radiação de estrelas muito massivas ioniza o meio interestelar. "O modelo 3D", diz a pesquisadora, "fornece uma visão detalhada dos processos que moldam nosso ambiente galáctico local e ajuda os astrônomos a entender as interações entre os componentes quentes e frios do Universo local."
Mas a criação deste mapa é, segundo os pesquisadores, apenas o começo. Gerar um modelo de alta resolução a uma distância de 4.000 anos-luz já exigiu imenso poder computacional, e os cientistas esperam que versões futuras do mapa, que incluirão novos dados do Gaia, possam se estender ainda mais para dentro da Via Láctea. "O Gaia", diz Johannes Sahlmann, cientista do projeto Gaia da ESA, "revolucionou nossa visão da vizinhança solar, permitindo aos cientistas mapear estrelas e material interestelar perto do Sol de uma forma que antes era impossível".
De fato, a quarta divulgação de dados do Gaia (Gaia Release 4), prevista para dezembro de 2026, promete qualidade e quantidade ainda maiores, permitindo que os astrônomos avancem ainda mais em sua compreensão das regiões onde as estrelas nascem. Mais tarde, em 2030, a Gaia Release 5 também será publicada com os dados restantes da sonda que ainda precisam ser analisados. A cada nova divulgação de dados, portanto, apesar de estar offline por meses, o Gaia continuará a fornecer uma visão detalhada e sem precedentes de nossa região da Via Láctea, ajudando-nos a desvendar os processos que a moldaram ao longo de bilhões de anos. Em essência, este novo mapa 3D não é apenas um atlas, mas uma máquina do tempo que nos permite perscrutar o passado e compreender os processos que continuam a impulsionar o nascimento e a morte das estrelas.
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